HUMILDE E BEM CONSIGO
Por Archana-siddhi
Devi Dasi
"Confundir
a humildade que surge do amor espiritual com uma postura de baixa autoestima que
nos torna presas de exploradores é um equívoco perigoso que precisamos
evitar."
Como
terapeuta de famílias, eu aconselho tanto membros do Movimento Hare Krishna como
pessoas de fora do Movimento. Recentemente, recebi um e-mail de uma jovem
devota que estava infeliz em seu casamento devido à postura abusiva que seu
esposo tinha, mas estava em conflito quanto a deixá-lo.
“Talvez
seja bom que eu me sinta mal comigo mesma”, ela escreveu, “porque isso me fará
desenvolver humildade”.
Não foi
a primeira vez que eu ouvi essa lógica. A Bhagavad-gita ensina que
humildade é essencial para o progresso espiritual. Algumas vezes, os devotos,
infelizmente, pensam que se sentir mal é um pré-requisito para a
humildade.
Diversas
vezes, me deparo com devotos se complicando com o conceito de autoestima. Tendo
lido as orações de santos de nossa linha, eles, algumas vezes, pensam que seus
sentimentos deveriam se enquadrar nas declarações autodepreciativas de tais
grandes almas. Por associarem baixa autoestima com avanço espiritual, tais
devotos podem perpetuar por toda a vida o sentimento de estarem mal consigo.
Eles podem acabar por atrair pessoas para suas vidas que lhes tratarão de acordo
com a maneira que eles mesmos se sentem e se percebem.
A
confusão começa por tentarmos igualar sentimentos que se originam de nosso eu
puro com sentimentos que se originam de nosso ego material, ou falso. As grandes
almas expressam sentimentos que nascem do ego espiritual puro, sentimentos que
não são contaminados pelas qualidades da natureza material. Quando eles se
sentem, nas palavras do Senhor Chaitanya, “mais baixos que a palha na rua”, é
uma emoção plena de prazer. O devoto puro vê a grandeza do Senhor e vê todos
como mais qualificados do que ele próprio. Eles estão imbuídos de amor e
apreciação por toda a criação de Krishna.
Bhaktivinoda
Thakura, um destacado mestre devotado a Krishna, escreveu belas canções
expressando sua atração e seu amor por Krishna, músicas sobre alcançar a meta do
coração – amor incondicional pelo Senhor – e canções autodepreciativas, nas
quais ele lamenta sua falta de devoção. Como uma alma pura, ele expressa seu
apego e amor pelo Senhor e, ao mesmo tempo, sua angústia de sentir-se
desqualificado e sem esperança de atingir tal amor. Esses são sentimentos
autênticos que nascem da humildade e do apego e amor pelo Senhor.
Reconhecendo
Nossas Falhas
Nas
primeiras fases de nossa jornada espiritual, talvez experimentemos rapidamente
essas emoções por Krishna estar preparando a terra de nossos corações para
cultivar nossa devoção. Eu me lembro de uma importante experiência que tive
antes de me tornar devota. Eu tinha grande dificuldade de aceitar críticas e
achava que minha opinião era absolutamente certa. Essa mentalidade criou
inúmeros problemas, tanto na área profissional quanto pessoal. Por meses, eu
contestei as recomendações de meu supervisor quanto a como fazer meu trabalho
como diretora residente de um dormitório universitário. Minha obstinação estava
fazendo o meu trabalho muito difícil, e eu estava aflita por isso. Finalmente,
um dia eu tive a poderosa realização de que eu estava errada. Não só eu estava
errada quanto a esse problema em particular, mas em relação a várias outras
coisas.
É-me
impossível descrever quão libertador foi para mim aceitar minha natureza
falível. Eu não precisava mais carregar o peso de estar sempre certa em relação
a tudo. Eu me senti pequena, mas, ao mesmo tempo, muitas possibilidades se
abriram para mim. Pela primeira vez na minha vida adulta, eu pude ver meu
autoritarismo assumir uma posição verdadeiramente submissa. Essa mudança de
postura mental me preparou para tomar refúgio em meu mestre espiritual e nos
devotos de Krishna de maneira geral. Krishna nos ajuda a ficarmos livres por um
instante do falso prestígio para que possamos, como encorajamento, provar a
doçura da humildade.
Algumas
vezes, todavia, quando ainda estamos contaminados pelos modos da natureza
material e identificados com nosso corpo e mente materiais, sentirmo-nos
inferiores à palha na rua pode nos tornar desmotivados, entediados ou
deprimidos. Esses sentimentos, então, impedem nossas práticas devocionais. Nós
temos que julgar se, para nossa psique específica, tal psicologia é favorável à
consciência de Krishna ou se é um impedimento no momento. Paradoxalmente, muitas
pessoas precisam desenvolver um saudável ego material antes de transcendê-lo e
realizar seu eu espiritual.
Eu ouvi
uma vez um palestrante motivacional dizer que as pessoas com autoestima saudável
pensam menos em si mesmas, e não menos de si mesmas. Quando nos sentimos bem
quanto a nós mesmos, nós podemos devotar mais tempo e energia doando-nos aos
outros, ao invés de absorvermo-nos em autopiedade. Alta autoestima também nos dá
liberdade para agirmos de acordo com nossos valores e convicções. Quando nos
sentimos mal conosco, às vezes fazemos coisas para agradar ou apaziguar os
outros. Em um esforço para satisfazer o desejo dos outros, nós podemos acabar
sendo influenciados a fazer coisas conflitantes em relação às nossas crenças e
valores.
Sentindo-se
Digno e Qualificado
Nathaniel
Branden, um famoso psicólogo, define autoestima como “a disposição de sentir-se
bem consigo e qualificado para lidar com os desafios básicos da vida e como
sendo digno de ser feliz”. Como esses aspectos da autoestima – autoconhecimento
e amor próprio – têm relação com a consciência de Krishna? Krishna quer que
todas as almas aprisionadas no mundo material sejam pacíficas e felizes. A vida
humana nos possibilita a oportunidade de ocuparmos nossos talentos e habilidades
no serviço ao Senhor. Quando nos oferecemos a servir o Senhor, sentimos grande
alegria. Um amigo, certa vez, deu ao meu esposo um quadrinho com os dizeres: “O
que você é é um presente de Deus para você, e o que você se torna é seu presente
para Deus”.
Além de
confundirem humildade com baixa autoestima, os devotos, às vezes, correlacionam
o conceito de autoestima com orgulho e egoísmo. Mas é, de fato, o contrário.
Pessoas que exibem alta autoestima também exibem uma atitude mais humilde
perante os outros. Eles são mais inclinados a admitir e corrigir erros, enquanto
pessoas com baixa autoestima são muitas vezes defensivas e têm a necessidade de
provarem que estão certas.
Em uma
famosa história do Mahabharata, Krishna encontrou certa vez com
Yudhisthira Maharaja e Duryodhana. Desejando glorificar Seu devoto Yudhisthira,
Krishna pediu a ele que encontrasse uma pessoa mais baixa que ele, e pediu ao
pecaminoso Duryodhana para que procurasse uma pessoa mais gloriosa que ele.
Yudhisthira tinha todas as boas qualidades. Ele era pacífico e autossatisfeito.
Sem dúvida, ele possuía uma saudável autoestima. Mesmo assim, ele não conseguiu
encontrar ninguém mais baixo que ele. Mais uma vez, aqui se tem o exemplo de uma
vaishnava avançado que porta humildade genuína.
Por
outro lado, o perverso Duryodhana procurou por todo o seu reino o dia todo e não
conseguiu encontrar ninguém que ele considerasse superior a ele mesmo.
Duryodhana estava contaminado com orgulho e vaidade. Ele invejou e ofendeu
grandes almas. Ele vivia em constante ansiedade para manter sua posição, sempre
tentando eliminar seus competidores. Sua autoestima dependia de fatores externos
como posição e poder, e assim ele não conhecia tal coisa como paz interior.
Ele era atormentado por sua própria luxúria e ambição.
Orgulho
Versus Autoestima
Pensar
em si mesmo como grandioso é orgulho, não autoestima. Uma pessoa com alta
autoestima demonstra humildade. A perfeição da autoestima é percebida em pessoas
completamente livres do falso ego, nas quais a humildade é produto da realização
espiritual.
No
nosso estado condicionado, nós possivelmente nos identificaríamos mais com a
mentalidade de Duryodhana do que com a de Yudhisthira Maharaja, mas, no nosso
progresso na jornada espiritual, nós começamos a nos ver de forma diferente.
Quanto mais realizamos não sermos o executor independente, mas o instrumento,
mais saudável nossa autoestima se torna. Na vida material, os modos da bondade,
paixão e ignorância nos influenciam. Esses modos se misturam e competem entre si
para moldar nossa mente, incluindo o modo como nos sentimos em relação a nós
mesmos.
Pessoas
no abismo do modo da ignorância se sentem felizes e bem em relação a si mesmas
quando seus sentidos estão satisfeitos. Pessoas imersas no modo da paixão estão
felizes e bem consigo mesmas quando outros valorizam e reconhecem suas
atividades. Nesses modos inferiores, nossa ideia de eu oscila o tempo
todo.
Pessoas
no modo da bondade são felizes e sentem-se bem em relação a si mesmas quando
agem em conhecimento, de acordo com seus códigos e valores. Elas são menos
reativas a estímulos externos, assim, a autoestima de tais pessoas depende mais
de sua própria vida interior – consequentemente, têm mais controle sobre como se
sentem.
Pessoas
em bondade pura, percebem a si mesmas como instrumentos do Senhor. Elas não se
identificam mais como o agente de suas atividades.
O
Exemplo de Prabhupada
Nosso
mestre espiritual, Srila Prabhupada, demonstrou alta autoestima. Embora de baixa
estatura, ele parecia grande para nós. Ele sempre mantinha sua cabeça alta e se
movia com objetivo e confiança. Ele fala de forma direta, com convicção e
coragem. Suas ações eram intrépidas e ousadas, e mesmo assim ele tinha uma
atitude humilde, sabendo que seu sucesso era devido à providência do Senhor. Sua
humildade é exemplificada em suas orações abordo do navio, quando ele estava
vindo pela primeira vez aos Estados Unidos:
“Ó
Senhor, eu sou como uma marionete em Tuas mãos. Então, se me trouxeste aqui para
que eu dance, faze-me dançar, faze-me dançar, ó Senhor, faze me dançar como
quiseres. Não tenho nenhuma devoção, tampouco conhecimento, mas tenho grande fé
no santo nome de Krishna. Eu fui designado como Bhaktivedanta, e agora, se assim
quiseres, podes cumprir o verdadeiro propósito
Bhaktivedanta”.
Com
grande humildade, Prabhupada finaliza sua carta assinando como “o mais
desafortunado e insignificante mendigo, A. C. Bhaktivedanta
Svami”.
De um
lado, essas preces demonstram que Prabhupada se sentia muito baixo, mas, por
outro lado, ele confiava poder fazer qualquer coisa com a misericórdia do
Senhor. A oração também nos dá a chave para desenvolvermos puras qualidades
devocionais: fé no santo nome. Quanto mais forte a nossa fé na capacidade de
purificação dos santos nomes, maior será nossa dedicação ao processo de cantar.
Nós cantaremos com tanto foco e atenção quanto pudermos e evitaremos com muito
cuidado as ofensas que retardam nosso progresso
espiritual.
Nós
ficamos menos propensos a explorar os outros quando vemos a nós mesmos como
servos, realizando a nossa natureza espiritual – bem como a dos outros - como
servos de Deus. Nós somos gloriosas centelhas da energia espiritual, com todas
as boas qualidades, embora sintamo-nos pequenos na presença do mais glorioso,
nosso Senhor. Com esse verdadeiro conhecimento, a alma pura pode ter alta
autoestima e humildade simultaneamente.
Quando
eu compartilhei alguns destes pontos com a jovem que havia me enviado sua
pergunta por e-mail, ela me escreveu de volta: “É-me um grande alívio
entender esses pontos dessa perspectiva. Agora eu entendo que não tenho que
continuar convivendo desonrosamente com todo o tipo de abusos para ser
espiritual”.
Ela me
sugeriu escrever um artigo sobre o tema para a revista Volta ao Supremo.
Eu aceitei de todo o coração sua sugestão, uma vez que outros devotos haviam
feito perguntas similares ao longo dos anos. Espero que o artigo seja útil para
todos.
ESPAÇO PONTO DE LUZ ROSANA RODRIGUES