O ASSUNTO NÃO É VOCÊ
Poucos
conselhos são mais perversos e canalhas do que o popular “trate as
outras pessoas como gostaria de ser
tratada”.
Não é verdade. Sabe por quê? Porque a outra pessoa é uma outra pessoa.
Porque ela
teve outra vida, outras experiências. Porque ela tem outros
traumas,
outras necessidades. Basicamente, porque ela não é você; porque
você não é,
nem nunca vai ser, nem deve ser, a medida das coisas.
Se você se usa como parâmetro para qualquer coisa, talvez devesse
pensar
duas vezes. A outra pessoa deve ser tratada
não como VOCÊ gostaria
de ser
tratada, mas como ELA merece e precisa ser tratada.
E você pergunta:
“Mas, Alex,
como vou saber como essa tal outra pessoa merece e precisa
ser
tratada?”
Bem, para isso, o primeiro passo é sair de si mesma e deixar de se
usar
de parâmetro
normativo do comportamento humano. Essa é a parte fácil.
Depois, abra bem os olhos e os ouvidos. Reconheça que existem
outras
pessoas e
que elas são bem diferentes de você.
Então, conheça-as. * * *
A primeira coisa que aprendemos em vendas é a colocar sempre
o foco na cliente. A chave para vender algo é
resolver um problema
ou necessidade da cliente – nem que para isso
você precise criar
a
necessidade! Idealmente, suas frases devem girar sempre em torno
da cliente:
“O que posso
fazer para colocá-LA em
um carro novo hoje mesmo?”, etc.
As vendedoras não fazem isso à toa. Funciona mesmo.
Entretanto, nas últimas décadas, a técnica se espalhou.
Basta ver a
capa de qualquer revista:
“20 maneiras
de agradar SEU homem”, “A recessão: como ela
afeta
o SEU emprego”, “ENTENDA a crise em Ruanda”, etc.
Esse último é especialmente traiçoeiro, por ser mais discreto.
Entretanto,
o efeito desse “entenda” é enorme, pois ele muda
totalmente o
eixo da discussão. Agora, o foco não é mais
a crise em
Ruanda, mas VOCÊ: o
importante não é mais o sofrimento
daquelas pessoas exóticas de uma cor diferente
da sua, mas que
VOCÊ entenda (superficialmente, claro) mais
uma coisa para poder
demonstrar
às colegas de trabalho como está up-to-date com assuntos
internacionais. Você, você, você. Não podemos
nem mais falar
sobre a
crise em Ruanda sem arrastar, logo quem, VOCÊ para o meio
da conversa.
A falácia, naturalmente, é que você não tem nada a ver com a
crise em Ruanda.
* * *
Falando em
termos da classe média ocidental, vivemos em um
mundo onde os pais e as mães param tudo para
virar escravas
das filhas: até Mozart na barriga da mãe
escutam. Depois,
crescem
sendo as deusas e os reizinhos da casa, mandando
em empregadas, vendo o mundo girar a sua
volta. Na TV,
mil anúncios voltados pra elas. Nos mercados,
mil produtos
feitos especialmente para fazer as crianças
pentelharem os
pais e as
mães para comprá-los. Nas escolas, as alunas
agora também
avaliam as professoras e exigem um bom
serviço em troca das suas mensalidades. Se
alfabetizam
lendo as mesmas notícias acima, sobre como
isso ou aquilo
os afeta, sempre dando a entender que a crise
em
Ruanda só
existe para que a entendam.
Aí, crescem e se tornam pessoas adultas que, ao invés de
refletir
sobre os privilégios que têm, lutam pelos que não
têm; que
acham que uma petição online é mais que nada;
que pensam
que vão salvar o mundo pelo consumo responsável,
comendo atum
dolphin-free e palmito não-proveniente da
Mata
Atlântica.
Ou seja, se tornam pessoas adultas que acham, sinceramente,
do fundo do
coração, que tudo gira em torno delas.
Que o
assunto é sempre elas.
* * *
“mas tenho
amigas negras”, “já namorei uma negra”, “chamo
meu amigo de Sombra /Grafite/Tição/etc e ele
nunca se importou”.
Só que sua opinião, seus amigos, suas namoradas, tudo isso
é
irrelevante, entende? O racismo é maior que você, já
existia
antes, vai continuar existindo depois. Essa discussão
tem que se
dar no nível da história e da sociologia, dos
indicadores
econômicos e das injustiças contemporâneas.
Quando
muito, talvez, da experiência pessoal das pessoas
negras que sofrem a discriminação, mas mesmo
isso é
altamente subjetivo, pois o preconceito também
é introjetado
pela própria comunidade. Mas, com certeza, não
da SUA
experiência
pessoal.
O assunto não é você. * * *
Fala-se de aquecimento global, e lá vem:
“mas esse
ano teve uma tempestade de neve na minha cidade”,
“2012 foi o
inverno mais frio da memória”, etc.
Só que as nevascas na sua cidade são incidentais e anedóticas,
entende? Eu
mesmo não tenho opinião sobre aquecimento
global, mas
ele vai ser provado ou desprovado através de
gráficos
climáticos globais sobre oscilações de temperatura
ao longos
dos séculos – e não pela quantidade de neve
bloqueando
seu carro no inverno passado.
O assunto não é você.
* * *
“não tenho
nada contra mas acho que essas paradas
gays me
incomodam e só estigmatizam o movimento”,
“minha religião diz que é pecado”, “se duas
pessoas gays
se beijarem em público, como vou explicar isso
pra minha filha?”
Mas sua religião, sua opinião, seu incômodo, sua filha, isso
tudo é irrelevante, entende? Outras
pessoas-cidadãs
tem outras
religiões, outras opiniões, outras filhas – e têm os
mesmos
direitos que você. Se as manifestações gays te incomodam,
resolva o problema na terapia ou no templo.
Você não
saber como explicar à sua filha um fenômeno
humano
ancestral como a homossexualidade não é
justificativa
para proibir alguém de viver seu amor.
O assunto não é você.
* * *
Os exemplos
poderiam continuar ad eternum.
Aborto,
transfobia,
descriminalização das drogas, pobreza.
Deixe sua
contribuição nos comentários.
* * *
Uma amiga leu o rascunho desse texto e perguntou:
“É lindo
isso, mas como você consegue ser assim?”
E eu tive que rir: mas quando foi que eu disse ou sugeri,
em algum
momento, por um segundo que fosse, que eu
conseguia ser assim?!
Não estou me colocando acima desse comportamento.
Bom
narcisista que sou, escrevi o texto não pensando
nas outras
pessoas, mas em mim mesmo e na minha
própria
vontade (tão vaidosa e tão
narcisa) de ser a
melhor
pessoa possível. Pois eu também faço tudo isso.
Escuto
alguma coisa e já trago logo para mim, quero
saber como
afeta a minha vida, tenho sempre uma anedota
pessoal para contribuir.
Não estou falando de cima, como o guru que conseguiu
praticar um comportamento ilibado,
pontificando às infelizes
lá embaixo
que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação:
pelo contrário, estou falando a partir dos
subterrâneos, do
meio da
multidão; estou falando justamente da briga diária
que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo
todo.
Mas agora estou mais alerta. Tento não reincidir. Já consigo
morder a
língua antes de falar besteira. Convido vocês a
tentarem
fazer o mesmo. E, na próxima vez em que virem
alguém se
colocando em um assunto onde não deveria estar,
deem o link
desse texto.
Repitam comigo. O assunto não é você. Ou melhor, o assunto não sou eu. O assunto não sou eu. |