Morte e
Renascimento no Hinduísmo
Loka-sakshi
Dasa
A alma imortal, seus corpos, o fenômeno da morte, os destinos da alma, os sacramentos e cerimoniais aos mortos.
asato ma sad
gamaya
tamaso ma jyotir
gamaya
mrityor ma ‘mritam
gamaya
“Do irreal, conduz-me ao
real. Das trevas, conduz-me à luz. Da morte, conduz-me à imortalidade”.
(Brihadaranyaka Upanishad 1.3.28)
Esta prece
dos Vedas proclama o desejo humano de viver plenamente o real, de ter a
consciência iluminada e de sobreviver eternamente, conquistando a morte. Certa
ocasião, Yudhisthira Maharaja, um grande rei sábio, foi questionado por
Yama, a personificação da morte, com a seguinte pergunta: “O que há de mais
maravilhoso neste mundo?” Yudhisthira respondeu
prontamente:
ahany ahani bhutani
gacchantiha yamalayam
esha sthavaram icchanti
kim acaryam atah para
“Todos os dias, centenas
e milhões de entidades vivas entram no reino da morte. Mesmo assim, as que ficam
aspiram por uma situação permanente. O que poderia ser mais maravilhoso do que
isso?” (Mahabharata, Vana-parva 313.116)
Na milenar tradição
védica, esse inconformismo com a morte sempre foi visto como uma indicação da
eternidade da alma. Em nosso inconsciente, não podemos aceitar a morte, pois
intuímos o fato da nossa imortalidade. Ninguém aceita facilmente a realidade da
morte, porque o que morre de fato é o corpo temporário e não a alma
eterna.
Eventualmente, porém,
todos temos de confrontar a morte. Para os seguidores da tradição védica, isso
não é algo para ser temido. Sabemos que já nascemos e morremos várias vezes.
O karma e a transmigração da alma fazem o inevitável parecer algo
natural, pois morrer é como adormecer, e nascer é como despertar do sono – algo
muito simples.
As escrituras védicas
declaram que a alma é imortal: ajo nityah shashvato’ yam, “a alma é
não-nascida, eterna e sempre existente”. (Bhagavad-gita 2.20) Ainda
assim, sofremos, pois esse é o preço do apego ao corpo material e a tudo o que é
impermanente. Com conhecimento, deve-se questionar, discriminar e encontrar a
compreensão que torne a morte aceitável. Assim, a morte consciente, como uma
elevada e poderosa experiência pessoal, pode dar sentido à vida e levar ao
autoconhecimento.
O Ser Eterno e a Morte
do Corpo
Segundo A.C.
Bhaktivedanda Swami Prabhupada, compreender nossa identidade como algo à parte
do corpo é o primeiro passo na autorrealização. Compreender que “eu não sou este
corpo, mas, sim, uma alma espiritual” é um entendimento essencial para qualquer
pessoa que deseja transcender a morte e entrar no mundo espiritual, que está
mais além.
Compreender nossa
identidade como algo à parte do corpo é o primeiro passo
na autorrealização.
Essa é a preocupação de
praticamente todos os místicos, seja no Ocidente, seja no Oriente. Por exemplo,
Sri Ramana Maharshi, quando ainda adolescente, foi tomado pelo pensamento de sua
morte iminente – o medo existencial do não-ser. Em vez de ser dominado pelo medo
da morte, ele aceitou a possibilidade da morte e começou a indagar sobre o
mistério da vida, utilizando o método muito simples
chamado atma-vicharana, autoindagação ou indagação pelo atma (o
Si-mesmo), que consistia em fazer para si mesmo uma única e constante
pergunta: ko’ ham, ”quem sou eu?”.
Contudo, embora
se possa compreender teoricamente que não somos estes corpos, mas o si-mesmo,
que é consciente do corpo, ainda assim todos se identificam com a vestimenta
corpórea. A tradição védica busca, portanto, na experiência prática, estruturar
a vida da pessoa, por meio de vários caminhos (margas), para que ela
possa experienciar a sua posição constitucional como alma espiritual
(atma).
No Oriente, entretanto,
há outras opiniões sobre a natureza da alma. No budismo, por exemplo, não existe
a crença em uma entidade permanente, em uma alma, ou atma, que seria o
sujeito da morte e do renascimento. Isso tem sido tema de debates intensos, pois
o budismo sustenta a doutrina do anatta ou anatmavada, a
“não-alma”.
No
budismo, diferente da cultura védica, não existe a crença em uma entidade
permanente.
Diferentemente dos
seguidores da cultura védica, que acreditam no “ser”, na “condição de isto”
(tat-tva), os budistas acreditam no “tornar-se”, na “condição de assim”
(tatha-ta). Dessa forma, no budismo, não há ator além da ação, nem
perceptor além da percepção. Em outras palavras, não há um sujeito consciente
por detrás da consciência. Isso, em resumo, leva ao conceito de ação
(karma) sem ator (karta). Então, em última instância, não pode
haver transmigração ou renascimento da alma, mas apenas um processo de
transformação perpétua dos agregados (skandhas), compostos da forma,
percepção, consciência, ação e conhecimento, que manifestam os sintomas do que
conhecemos por vida.
No conhecimento védico,
em contraste, a vida não é vista como mero sintoma de condições que a torna
possível, mas, sim, como decorrente da presença da própria alma espiritual. Para
os seguidores da sabedoria védica, acreditar no karma sem aceitar os
conceitos da alma individual (jivatma) e seu renascimento
(punar-janma) é algo desconcertante.
Sri Krishna estabelece
na Bhagavad-gita, inequivocamente, a imortalidade da alma quando
declara, para Seu amigo e discípulo Arjuna, como segue:
na
tu evaham jatu nasam na tvam neme janadhipah
na
caiva na bhavishyamah sarve vayam atah param
“Nunca houve um tempo em
que Eu não existisse, nem tu, nem todos estes reis, e, no futuro, nenhum de nós
deixará de existir”. (Bhagavad-gita 2.12)
avinashi tu tad viddhi
yena sarvam idam tatam
vinasham avyayasyasya na
ka cit kartum arhati
“Deves saber que aquilo
que penetra o corpo inteiro é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a alma
imperecível”. (Bhagavad-gita 2.17)
Não é possível entender
os conceitos da morte e do renascimento no hinduísmo sem saber a diferença entre
a alma permanente (atma) e o corpo material temporário.
A Bhagavad-gita explica a natureza da alma com a seguinte
analogia:
yatha praka ayaty ekah
kritsnam lokam imam ravih
kshetram kshetri tatha
kritsnam prakashayati bharata
“Assim como o Sol
ilumina sozinho todo este mundo, a entidade viva, sozinha dentro do corpo,
ilumina o corpo inteiro através da consciência”. (Bhagavad-gita
13.34)
Sri Krishna estabelece
na Bhagavad-gita, inequivocamente, a imortalidade da
alma.
A consciência evidencia
concretamente a presença da alma dentro do corpo. Em um dia nublado, o Sol pode
não estar visível, mas sabemos que ele está presente no céu, através da presença
da luz solar. Analogamente, podemos não ser capazes de perceber diretamente a
alma, mas podemos concluir que ela existe pela presença da consciência. Na
ausência da consciência, o corpo é simplesmente um monte de matéria morta.
Somente a presença da consciência faz com que esse monte de matéria morta
possa respirar, falar, amar e temer.
Essencialmente, o
corpo é um veículo para a alma, por meio do qual ela pode satisfazer seus
desejos. A alma dentro do corpo está “sentada em uma máquina feita de energia
material [yantrarudhani mayaya]”. (Bhagavad-gita 18.61) Ela se
identifica falsamente com o corpo, transportando suas diferentes concepções da
vida, de um corpo para outro, assim como o ar transporta os aromas. Do mesmo
modo que um automóvel não pode funcionar sem um motorista, o corpo material não
pode funcionar sem a presença da alma.
A Bhagavad-gita explica
claramente a diferença entre o que é real e o que é irreal, nasato vidyate
bhavona bhavo vidyate satah: ”Não há continuidade para o inexistente,
nem cessação para o existente”.
(Bhagavad-gita 2.16)
O corpo material vem a
existir em certo momento, cresce, amadurece, gera subprodutos (filhos) e
gradualmente degenera e morre. O corpo físico, neste sentido, é irreal, pois
ele desaparecerá no devido tempo. No entanto, apesar de todas as mudanças do
corpo material, a consciência, o sintoma da alma que está dentro, permanece
imutável. Conclui-se, portanto, que a consciência possui a qualidade inata de
permanência, que lhe permite sobreviver às mudanças e à destruição do corpo. Sri
Krishna afirma, na jayate mriyate va kadacin na hanyate hanyamane
sharire: ”Para a alma, nunca há nascimento nem morte. Ela não é aniquilada
quando o corpo é aniquilado”. (Bhagavad-gita 2.20)
Entretanto, se a alma
“não é aniquilada quando o corpo é aniquilado”, o que acontece com ela? Segundo
a Bhagavad-gita, ela entra em outro corpo:
dehino‘ smin yatha dehe
kaumaram yauvanam jara
tatha dehantara-praptir
dhiras tatra na muhyati
“Assim como, neste
corpo, a alma corporificada seguidamente passa da infância à juventude e à
velhice; chegando a morte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoa ponderada
não fica confusa com essa mudança”. (Bhagavad-gita
2.13)
vasamsi jirnani yatha
vihaya navani grihnati naro‘ parani
tatha sharirani vihaya
jirnany anyani samyati navanidehi
“Da mesma forma que
alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos
materiais, abandonando os velhos e inúteis”. (Bhagavad-gita
2.22)
Diferentes corpos são
como diferentes vestes para a alma.
Dessa forma, a alma
permanece enredada no samsara, o ciclo interminável de nascimentos e
mortes, pois jatasya hi dhruvo mrityurdhruvam janma-mritasya
ca: ”Para aquele que nasceu, a morte é certa, e, para aquele que
morreu, o nascimento é certo”. (Bhagavad-gita 2.27)
As entidades vivas
nascem perpetuamente em várias espécies de vida, de acordo com a natureza de
seus desejos, pois, segundo a Bhagavad-gita:
yam yam vapi smaram
bhavam tyajaty ante kalevaram
tam tam evaiti kaunteya
sada tad-bhava-bhavitah
“Qualquer que seja o
estado de existência de que alguém se lembre ao deixar o corpo, esse mesmo
estado ele alcançará impreterivelmente”. (Bhagavad-gita
8.6)
Tudo o que pensamos e
fazemos durante nossa vida deixa uma impressão (vrittis) na mente, e a
soma total de todas essas impressões (samskaras) influencia nossos
pensamentos finais na hora da morte.
A
soma das impressões em nossa mente na hora da morte determina nosso próximo
nascimento.
Essas influências são
causadas pelos gunas, ”cordas”, ou “modos da natureza
material”. Eles são as três qualidades básicas constitutivas da natureza
material, assim como a luz branca constitui-se de três cores básicas.
Os gunas são: rajas, caracterizado por paixão, atividade ou
expansão; tamas, que se caracteriza por ignorância, inação ou escuridão;
e sattva, identificado por bondade, harmonia ou luz. Sattva conduz
para cima, rajas mantém no meio, tamas leva para
baixo.
A Bhagavad-gita
esclarece que essas qualidades da natureza material funcionam sob o controle
divino e prendem as almas neste mundo, daivi hy esha guna-mayi mama maya
duratyaya: “Esta energia divina, que consiste nos três modos da natureza
(gunas), é difícil de ser superada”. (Bhagavad-gita 7.14) Sua
influência sobre as almas encarnadas é total:
sattvam rajas tama iti
gunah prakriti-sambhavah
nibadhnanti maha-baho
dehe dehinam avyayam
“A natureza material
consiste de três modos – bondade (sattva), paixão (rajas) e
ignorância (tamas). Ao entrar em contato com a natureza, ó Arjuna de
braços poderosos, a entidade viva eterna condiciona-se a esses modos”.
(Bhagavad-gita 14.5)
Consequentemente, de
acordo com a qualidade de nossos pensamentos na hora da morte, recebemos da
natureza material um corpo adequado. A Bhagavad-gita explica como a
influência dos gunas na consciência, e o apego a eles, determinam a
natureza do nascimento da pessoa:
yada sattve pravriddhe
tu pralayam yati deha-bhrit
tadottama-vidam lokan
amalan pratipadyate
“Quando alguém morre no
modo da bondade (sattva), atinge os mundos superiores e puros, onde
residem os grandes sábios”. (Bhagavad-gita 14.14)
rajasi pralayam gatva
karma-saṅgishu jayate
tatha pralinas tamasi
mudha-yonishu jayate
“Quando alguém morre no
modo da paixão (rajas), nasce entre os que se ocupam em atividades
fruitivas. E quando morre no modo da ignorância (tamas), nasce no reino
animal”. (Bhagavad-gita 14.15)
purushah prakriti-stho
hi bhunkte prakriti-jan gunan
karanam guna-sango’ sya
sad-asad-yoni-janmasu
“Dessa forma, a entidade
viva dentro da natureza material segue os caminhos da vida, desfrutando os três
modos da natureza. Isso decorre de sua associação com essa natureza material.
Assim, ela se encontra com o bem e o mal, entre as várias espécies de vida”.
(Bhagavad-gita 13.22)
O tipo de corpo que
alguém possui agora é a expressão tanto da influência causada
pelos gunas na consciência, quanto do mérito acumulado das ações
(karma) em vidas passadas. Esse karma é definido como,
bhuta-bhavodbhava-karo visargah karma-samjñitah: “Karma é a ação
que desencadeia o desenvolvimento dos corpos materiais das entidades vivas”.
(Bhagavad-gita 8.4)
Assim,
a Bhagavad-gita explica que:
shrotram cakshuh
sparshanam ca rasanam ghranameva ca
adhishthaya mana cayam
vishayan upasavate
“A entidade viva,
aceitando esse outro corpo grosseiro, obtém um certo tipo de ouvido, olho,
língua, nariz e sentido do tato, que se agrupam ao redor da mente. Ela, então,
desfruta de um conjunto específico de objetos dos sentidos”. (Bhagavad-gita
15.9)
Portanto, segundo o
hinduísmo tradicional, o caminho da reencarnação nem sempre leva para o alto; o
ser humano não tem garantia de um nascimento humano em sua próxima vida. Por
exemplo, se alguém morre com mentalidade de um cachorro, então, em sua próxima
vida, receberá os olhos, ouvidos, nariz etc. de um cachorro, para que ele
desfrute de prazeres caninos. Krishna confirma tal destino dizendo, tatha
pralinas tamasi mudha-yonishu jayate: “Quando morre no modo da ignorância,
nasce em corpo irracional, como de um animal”. (Bhagavad-gita
14.15)
Se
uma alma desperdiça sua vida humana, pode vir em nascimentos animais
posteriormente.
Na Bhagavad-gita,
encontramos que os seres humanos que não indagam sobre sua natureza
metafísica, superior, são compelidos pela lei do karma a continuar o
ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos, aparecendo ora como humanos, ora
como animais ou plantas. Nossa existência no mundo material deve-se às múltiplas
reações cármicas desta vida e das anteriores, e o corpo humano fornece o
instrumento através do qual a alma pode escapar. Por utilizar apropriadamente a
forma humana de vida, procuram-se resolver todos os problemas da vida
(nascimento, velhice e morte) e quebrar o ciclo interminável de reencarnações.
Essa seria a missão da vida humana, athato brahma-jijñasa: ”Questionar
sobre a Verdade Absoluta”. (Vedanta-sutra 1.1.1)
Se, entretanto, uma
alma, tendo se desenvolvido até a plataforma humana, desperdiça sua vida
ocupando-se unicamente em atividades para o prazer dos sentidos, ela pode
facilmente criar karma suficiente nesta vida atual para manter-se
enredada no ciclo de nascimentos e mortes, por muitas vidas. E há o perigo de
talvez nem todas elas serem humanas.
Os Corpos ou Coberturas
da Alma
Na tradição védica,
identificam-se os corpos materiais da alma com os koshas, termo em
sânscrito que significa “invólucro, cobertura, bainha, vaso ou recipiente”. O
conceito dos “cinco invólucros” (pañca-kosha) constitui um paradigma
quântico que vê a alma condicionada e acondicionada em um organismo psicofísico
multidimensional. Isso pode ser encontrado nos textos
das Upanishads (Taittiriya Upanishad 2.2-5, 3.10.5; Sarvarara
Upanishad 2; Tejobindu Upanishad 4.75)
Esses invólucros
(kosha) são roupagens que revestem a alma quando ela está condicionada
neste mundo material. A Bhagavad-gita explica que a identidade da alma é
ser eternamente parte integrante fragmentária da
Divindade:
mamaivamsho jiva-loke
jiva-bhutah sanatanah
manah-shashthanindriyani
prakriti-sthani karshati
“As almas condicionadas
neste mundo são Minhas eternas partes fragmentárias. Por força da vida
condicionada, elas empreendem árdua luta com os seis sentidos, entre os quais se
inclui a mente”. (Bhagavad-gita 15.7)
Assim como o corpo
físico permite que ela viva na dimensão física, os invólucros ou corpos sutis
permitem que ela possa viver simultaneamente em vários planos de existência,
como nos sonhos, transes, desdobramentos e regressões psíquicas, e, depois da
morte, viver nas dimensões ou mundos sutis.
Além do corpo grosseiro,
a alma tem um corpo sutil enquanto está neste mundo.
Os koshas, em
ordem de maior sutileza, são: (1) anna-maya kosha, ”invólucro feito de
alimento”, que é o corpo físico, também chamado de sthula-sharira ”corpo
denso”; (2) prana-maya kosha, “invólucro feito de prana, energia
vital”, que é o corpo vital, o qual é etéreo e co-existe com o corpo físico,
como sua fonte de energia e vitalidade, e faz a conexão com os invólucros mais
sutis e aloja os sentidos; (3) mano-maya kosha, ”invólucro feito de
mente”, que é o corpo emocional ou o sentido interno, onde se processam as
emoções, sentimentos, pensamentos e desejos; (4) vijñana-maya
kosha, “invólucro feito de sabedoria”, que é o corpo intelectual,
onde reside a memória, a discriminação, a criatividade, a compreensão e a
intuição; e (5) ananda-maya kosha, “invólucro feito de bem-aventurança”,
que é o corpo causal, onde pode ser realizada a identidade e individualidade da
alma, o local da consciência pura ou transpessoal.
O termo “corpo sutil”
geralmente indica os invólucros que constituem o corpo sutil, não-físico, da
alma, chamado em sânscrito de sukshma-sharira, e inclui os seguintes
invólucros: prana-maya kosha, mano-maya kosha e o vijñana-maya
kosha. Ele permite que a alma atue na dimensão astral, ou plano
astral.
Na hora da morte,
envolvida pelos invólucros (koshas) energético (prana-maya),
emocional (mano-maya), intelectual (vijñana-maya) e causal
(ananda-maya) do corpo sutil, a alma deixa o seu invólucro físico
(anna-maya).
O Fenômeno da
Morte
Na tradição védica,
descreve-se a morte como maha-prasthana, “a grande partida”. É uma
experiência muito intensa e determinada pela qualidade da vida da pessoa. Há
quem tenha visões, que variam da experiência de encontrar-se com seres
assustadores – descritos como yamadutas, “mensageiros da morte”, que
arrancam à força a alma apegada ao corpo –, à experiência de ser conduzido
harmoniosamente por um túnel de luz, em cujo fim há seres divinos. Sujeitos que
tiveram experiências de quase-morte nos dão testemunho desses encontros
transformadores.
Experiências de quase
morte evidenciam as descrições das escrituras.
Uma senhora que “morreu”
durante um trabalho de parto, mas foi revivida imediatamente por procedimentos
médicos, descreveu: “Era muita energia – uma luz incrível. Eu praticamente
flutuava nela. Minha consciência foi tomada por sentimentos de amor
incondicional, de segurança completa, de perfeição total. Então, sentia que era
imortal, que era quase indestrutível. Não podia mais ser ferida, nem me perder.
O mundo me parecia perfeito”.
Centenas de pessoas
falam de experiências similares, confirmando o que as tradições do Oriente
sempre descreveram – que a morte pode ser uma transição bem-aventurada,
iluminada, de um estado para outro, tão simples e natural como a troca de
roupas. Algo completamente diferente das alternativas mórbidas e infernais que
geram tanto medo e insegurança nas pessoas.
A morte é uma série de
mudanças pelas quais todos passam, e a separação da alma do seu corpo físico
torna-se o ponto inicial da jornada para uma vida nova. A morte não é o fim da
personalidade e da autoconsciência; ela meramente abre a porta para outra forma
de vida. A morte, quando experimentada de forma consciente, pode tornar-se o
portal para a plenitude da vida.
Nascimento e morte são
meros ardis de maya, o aspecto ilusório da energia material. Na
realidade, vida é morte, e morte é vida. Quem nasceu já começou a morrer, e quem
morreu já começou a viver. Isso é o que afirmam as escrituras
védicas, jatasya hi dhruvo mrityur dhruvam janma mritasya
ca: “Certa é a morte do que nasce, e certo é o nascimento do que
morre”. (Bhagavad-gita 2.27)
Quando, por algum
motivo, a alma (jivatma ou jiva) tem de abandonar definitivamente
o corpo físico (anna-maya-kosha), os canais (nadis) onde circulam
os ares vitais (pranas) perdem o vigor e ficam incapacitados de
expandir-se e contrair-se para exalar e inalar o ar. Assim, o corpo perde sua
harmonia e fica agitado. Então, o ar inalado não sai adequadamente, nem o ar
exalado entra novamente no corpo. Assim, a respiração cessa. E, com a parada da
respiração, surge a inconsciência, e considera-se, então, que ocorreu a
morte.
Nesse momento, todos os
desejos e ideias se retraem, pois o jiva carrega dentro de seu corpo
sutil (sukshma-sharira) todos os seus vasanas, que são os desejos
ou impressões mentais do passado. Com a morte do corpo físico, os pranas,
que carregam as coberturas mais sutis – e, dentro delas, a própria alma – saem
do corpo e vagam pelo ar.
Considera-se que a
atmosfera está saturada de uma enormidade de pranas que levam dentro de
si os jivas, que, por outro lado, comportam potencialmente dentro delas
todas as suas experiências de vida. Naquele momento, o si-mesmo, ou alma
individual, com todos os vasanas dentro de si, passa a ser denominada
de preta, “quem foi para o outro mundo”.
Nas Upanishads e
na Bhagavad-gita, encontramos mais detalhes de como a alma muda de
corpos:
tam utkramantam
prano’nutkramati pranamanutkramantam sarve prana anutkramanti, sa-vijñano
bhavati sa-vijñanamevanvavakramati, tam vidya-karmani samanvarabhete
purva-prajña ca
“Quando a alma parte do
corpo, o ar vital a segue; e quando o ar vital parte, é acompanhado de todos os
sentidos. Então, a alma adquire um tipo específico de consciência e
passa ao corpo adequado a essa consciência. Ela é seguida pelo
conhecimento, karma e impressões latentes passadas”. (Brihadaranyaka
Upanishad 4.4.2)
tad yatha trina-jalayuka
trinasyantam gatva anyam akramamakramya atmanam upasamharati, evam evayam atma
idam shariram nihatya avidyam gamayitva anyam akramam akramya atmanam
upasamharati
“Assim como uma lagarta
na grama, chegando ao fim da folha, retrai-se e busca outro suporte;
este atma, deixando o corpo atual, que fica inconsciente, retrai-se e
aceita um novo corpo”. (Brihadaranyaka Upanishad
4.4.3)
vasamsi jirnani yatha
vihaya navani grihnati naro ’parani
tatha sharirani vihaya
jirnany anyani samyati navanidehi
“Assim como alguém veste
roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos materiais,
abandonando os velhos e inúteis”. (Bhagavad-gita
2.22)
tad yatha peshas-kari
peshaso matram upadayanyannavataram kalyanataram rupam tanutei, evam evayam atma
idam shariramnihatya avidyam gamayitva anyam navataram rupam kurute pitryam va
gandharvam vadaivam va prajapatyam va brahmam va anyesham va
bhutanam
“Assim como um artesão,
pegando um pouco de ouro, molda outra forma – mais nova e melhor –,
este atma, deixando o corpo atual, que fica inconsciente, cria outra
forma – mais nova e melhor –, como a dos manes (pitris), cantores
celestiais (gandharvas), deuses (devas), prajapatis e
Brahma”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.4)
yatha-kari yatha-cari
tatha bhavati, sadhu-kari sadhur bhavati, papa-kari papo bhavati,
apunyah punyena karmana bhavati papah papena
“Como faz e age, assim a
pessoa se torna. Fazendo o bem, ela se torna boa, e fazendo o mal, ela se torna
má; torna-se virtuosa por ações virtuosas e torna-se viciosa por ações
viciosas”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.5)
Os Destinos da Alma
Depois da morte, segundo
a natureza de sua consciência e o mérito cármico de suas atividades passadas, a
pessoa toma rumos diversos. A Bhagavad-gita descreve dois caminhos
principais: devayana e pitriyana. O primeiro deles, chamado
de devayana, é o caminho dos deuses, que é trilhado por almas
espiritualmente avançadas. Essas levaram uma vida extremamente pura,
devotando-se integralmente à meditação no Absoluto (brahman), mas, apesar
de possuírem conhecimento espiritual, não conseguiram obter autorrealização
plena (jiva-mukti) antes da morte. Elas, então, são conduzidas para
Brahmaloka, o sistema planetário mais elevado do universo material, e, de lá, no
devido tempo, obtêm a libertação. Esse caminho é o caminho que não tem volta e é
descrito na Chandogya Upanishad:
tad ya ittham viduh ye
ceme ’ranye sraddha tapaity upasate te ’rcisham abhisambhavanty arcisho ’harahna
aparyamanapakshamapuryamanapakshad yan shad udann eti masams tan
“Então, aqueles que
estão em conhecimento e aqueles que, vivendo na floresta, seguem uma vida de fé
e austeridades vão para a luz, da luz para o dia, do dia para a quinzena clara,
da quinzena clara para os seis meses em que o Sol está ao norte”. (Chandogya
Upanishad 5.10.1)
samebhyah samvatsaram samvatsarad
adityam adityaccandramasam candramaso vidyutam tat purusho ’manavah sa enan
brahma gamayatiesha devayanah pantha iti
“Dos meses, eles vão
para o ano, do ano para o Sol, do Sol para a Lua, e da Lua para o relâmpago. Lá,
uma pessoa não humana conduz a alma para o Brahman. Esse é o caminho dos
deuses”. (Chandogya Upanishad 5.10.2)
O segundo, conhecido
como pitriyana, é o caminho dos antepassados, que é seguido pelas almas
que, seguindo os rituais prescritos nas escrituras, foram muito caridosas e
piedosas, cultivaram desejo pelo resultado de suas caridades, austeridade, votos
e adoração. Seguindo esse caminho, elas são conduzidas para Chandraloka, a
região lunar, onde podem desfrutar de imensa felicidade como recompensa por suas
ações virtuosas. Entretanto, quando o saldo cármico se exaure, elas têm de
voltar para a Terra, visto ainda terem desejos terrenos. Descreve-se esse
caminho também na Chandogya Upanishad:
atha ya ime grama
ishtapurte dattam ity upasate tedhumam abhisambhavanti dhumad ratrim ratrer
aparapaksha aparapakshad yan shaddakshinaiti masams tan naite samvatsaram
abhiprapnuvanti
“Por outro lado, aqueles
que vivem em vilas, praticando sacrifícios e trabalhos de utilidade pública e de
caridade, vão para a fumaça (dhuma), da fumaça para a noite
(ratri), da noite para a quinzena escura, da quinzena escura para os seis
meses em que o Sol está ao sul. De lá, eles não alcançam o ano”. (Chandogya
Upanishad, 5.10.3)
masebhyah pitrilokam
pitrilokad akasham akashaccandramasam
“Dos meses, eles vão
para o mundo dos antepassados, do mundo dos antepassados, para o espaço, do
espaço para a Lua”. (Chandogya Upanishad 5.10.4)
tasmin yavat sampatam
ushitvathaitam evadhvanampunar nivartante
“Residindo ali até
esgotar o resultado de suas ações, voltam pelo mesmo caminho por onde vieram”.
(Chandogya Upanishad 5.10.5)
Alma de um yogi deixa o
corpo e procede para a Lua, de onde terá que voltar.
Além desses dois
caminhos, há um terceiro caminho, que conduz ao inferno, trilhado por almas que
levaram uma vida impura e pecaminosa, com consciência degradada, e que
executaram atividades proibidas pelas escrituras.
Depois de alcançarem
umbrais ou dimensões infernais, elas renascem em espécies inferiores, muitas
vezes animais e vegetais, para sofrerem e satisfazerem seus desejos inferiores.
Isso é explicado na mesma Upanishad, atha ya iha kapuya-carana
abhyashoha yat te kapuyam yonim apadyeran shva-yonim va sukara-yonim va
candala-yonimva: “Mas aqueles cujo resíduo cármico é mau, logo nascem
em ventres inferiores, como o de um cachorro, porco ou pária”. (Chandogya
Upanishad 5.10.7) Em todo caso, depois da expiação de suas atividades
pecaminosas, renascem em corpos humanos.
Os
místicos yogis ou bhaktas que alcançaram a perfeição espiritual e
se libertaram ainda em vida (jivan-muktas) não são conduzidos por nenhum
desses caminhos, mas, de acordo com a natureza de sua libertação – se ela é
impessoal ou pessoal –, obtêm o destino supremo (param gati), fundem-se
na existência imanifesta do Absoluto (param jyoti) ou são resgatados
pessoalmente pela Personalidade da Divindade (Bhagavan), que os abriga em
Sua morada espiritual (param dhama).
Compara-se o morrer com
o dormir, e as experiências do pós-morte, com os sonhos. Assim como os
pensamentos e ações acontecidos no estado de vigília determinam a natureza dos
sonhos; depois da morte, a alma experimenta o resultado dos pensamentos
acalentados e das ações executadas durante sua vida na Terra. As experiências
do pós-morte são reais para a alma, assim como um sonho é real para o sonhador,
e ninguém pode determinar a sua duração.
Segundo as escrituras
védicas, algumas almas renascem como seres humanos logo depois da morte, sem
passar pela experiência do paraíso ou inferno. A questão de renascimento da alma
em formas inferiores à humana, apesar de ser considerada um lapso, não constitui
um retrocesso na evolução espiritual da alma para o autoconhecimento ou amor
místico. O que deve ser compreendido é que a próxima vida é determinada pela
consciência da pessoa na vida presente, que, por sua vez, determinaria o último
pensamento da pessoa na hora da morte. O último pensamento do moribundo
inevitavelmente reflete seu desejo mais íntimo. A Bhagavad-gita afirma,
yam vapi smaram bhavam tyajaty antekalevaram, tam evaiti kaunteya sada
tad-bhava bhavitah: “Qualquer que seja o estado de existência do qual alguém
se lembre ao deixar o corpo, ó filho de Kunti, esse mesmo estado ele alcançará
impreterivelmente”. (Bhagavad-gita 8.6)
Krishna também descreve
a posição daqueles que adotam bhakti, o caminho da devoção pura, e
dependência à Personalidade da Divindade, naiti sriti partha janan yogi
muhyati kashcanatasmat sarveshu kaleshu yoga-yukto bhavarjuna: “Os devotos
que conhecem estes dois caminhos [devayana e pitriyana], ó Arjuna,
nunca se confundem. Portanto, mantém-te sempre fixo na devoção”.
(Bhagavad-gita 2.27) Na posição da Suprema Personalidade da Divindade,
Krishna também afirma, ananya-cetah satatam yo mam smarati nityashah,
tasyaham sulabhahpartha nitya-yuktasya yoginah: ”Ó filho de Pritha, aquele
que se lembra de Mim sem desvios, Me alcança facilmente, por causa de sua
ocupação constante”. (Bhagavad-gita 8.14)
Conceitos Hindus do
Pós-morte
As Upanishads
falam da essência imutável e consciente de todos os seres, plurais ou
singulares, como a “alma” ou o “si-mesmo”. Isso, em sânscrito, recebe o nome
de atma (ou atman) Essa alma seria o “ser interior consciente”
dentro de cada um de nós, identificada ontologicamente (quando a sua natureza de
“ser” ou “existir”) como Brahman. O Brahman seria o Ser absoluto e
supremo, a Divindade em Seu aspecto unitário, além de todas as particularidades.
Contudo, quando essa mesma Divindade suprema, identificada ontologicamente com
o Brahman, é observada do ponto de vista da consciência (psicologicamente), é
descrita como o Atma Supremo. Por isso, as Upanishads descrevem a
unidade dos dois, pois se tratam de dois aspectos da mesma realidade, sa va
ayam atma brahma: “Este Atma é, na verdade, o Brahman”.
(Brihadaranyaka Upanishad 4.4.5)
Do ponto de vista do
Absoluto, Atma é o próprio Paramatma, o Si-mesmo Supremo, a
Superalma, a Divindade em Sua onipresença e onisciência. No entanto, quando
observado da perspectiva relativa e individual, da pluralidade dos seres ou
centelhas espirituais, atma é jivatma, a alma ou entidade viva
consciente individual. A alma individual (jivatma) seria igual à
Divindade quanto ao “ser” (sat), mas seria diferente quanto à
“consciência” (cit).
Nas Upanishads,
mostram-se as diferenças entre dois tipos de almas – ambas eternas, mas uma
Absoluta, e outras relativas; uma singular, e outras plurais; uma independente,
e outras dependentes, nityo nityanam cetanash cetananam, eko bahunam yo
vidadhai kaman: “Eterno entre os eternos, Consciente entre os conscientes.
Um entre os muitos, Ele satisfaz os desejos de todos”.
(Katha Upanishad 5.13)
Apesar da sua natureza
espiritual e transcendente, apesar de seu ser não poder ser afetado pelas
variações do tempo e espaço, a consciência do jivatma, por ser
fragmentária, quando se esquece de sua relação com o Paramatma, é
influenciada pela energia material. Com isso, ele se envolve no ciclo
de samsara (roda de nascimentos e mortes).
O que prende todos no
ciclo de samsara é a lei do karma. Em sua forma mais simples, a
lei do karma age impessoalmente, como uma lei natural, assegurando que
toda ação, seja ela boa ou má, eventualmente retorne ao indivíduo na forma de
recompensa ou punição proporcional à natureza da ação
executada.
Ilustração cartunesca da
lei do karma.
A necessidade de “colher
os frutos do karma” é o que obriga os seres humanos a nascer novamente
(punar-janma), reencarnando em vidas sucessivas. Em outras palavras, se
alguém morre antes de colher os frutos de suas ações passadas, o processo
cármico forçará o seu retorno em vida futura. Voltar em outra vida também
possibilita que as forças cármicas recompensem ou punam a pessoa através das
circunstâncias de seu nascimento. Assim, por exemplo, quem foi generoso em uma
vida poderá retornar como alguém muito próspero na sua próxima
encarnação.
Para todas as tradições
religiosas do Oriente, a emancipação na hora da morte constitui a meta suprema
de todos os esforços humanos. Considerando a sua diversidade religiosa, o
hinduísmo, da execução de sofisticados rituais, passando por formas austeras de
disciplinas de autoconhecimento, yoga e meditação e chegando à devoção
mística, busca várias formas de libertação.
O ritualismo
do karma-marga (caminho das ações fruitivas), representado pela tradição
sacerdotal dos brahmanas, busca, por meio da correta hermenêutica das
escrituras védicas, a execução adequada dos ritos e a entoação correta
dos mantras, para elevar o praticante às dimensões celestiais dos
deuses e depois obter melhor renascimento neste mundo. Nessa tradição
materialista, não se busca o fim do ciclo de nascimentos e mortes, mas, sim,
obter a maior felicidade possível.
A tradição gnóstica do
hinduísmo, o jnana-marga (caminho do conhecimento), representada
principalmente pela escola smarta do Vedanta Advaita, considera
que a meta final da existência é alcançar moksha, termo sânscrito que
indica a libertação do ciclo infinito de nascimentos e mortes. O que acontece
com a pessoa quando ela obtém moksha? Nessa tradição, acredita-se que,
com moksha, o atma individual funde-se
no Brahman universal. Utiliza-se a imagem da gota d’água que cai no
oceano e perde sua individualidade. A gota torna-se igual ao oceano. Apesar de
ser muito utilizada, essa metáfora não expressa bem o sentido de fundir-se. Em
vez da perda da individualidade, a compreensão das Upanishads é a de que
o atma nunca existe separado do Brahman. Portanto, o sentido de separação
é que é ilusório, e moksha é o despertar desse sonho de
separação.
A tradição mística
do yoga-marga (caminho do misticismo), representada por austeros
renunciantes, busca, por meio do controle das funções psicofísicas, elevar a
consciência para o estado de samadhi, transe místico que conduz
ao moksha, a libertação do ciclo de nascimentos e
mortes.
A tradição devocional
do bhakti-marga (caminho da devoção amorosa), por sua vez, rejeita as
posturas impessoais, tanto do ritualismo brâmane como do Vedanta Advaita,
com sua ênfase intelectual nas afirmativas unitárias das Upanishad. Nessa
tradição, Deus é visto como uma Deidade pessoal eterna, supremamente amorosa e
que, por Sua graça, corresponde à adoração devocional de Seu devoto. O pós-morte
no teísmo devocional não é uma bem-aventurança estática e abstrata, causada pela
fusão da identidade individual da alma no oceano da refulgência do Brahman. Pelo
contrário, a tradição devocional considera que as almas libertas participam
eternamente de uma relação bem-aventurada com a Divindade, em Sua morada eterna,
o Céu espiritual (param-vyoma). Esse mundo místico de amor espiritual, de
alguma forma, lembra o Paraíso eterno das religiões ocidentais, mas não deve ser
confundido com o paraíso temporário dos deuses (devas) e dos antepassados
(pitris).
Juntamente com a
existência de regiões celestiais, destinadas aos justos e piedosos, podemos
também encontrar no hinduísmo o conceito bem desenvolvido de dimensões
infernais, nas quais as pessoas excepcionalmente pecaminosas são punidas
psiquicamente. Muito dos tormentos que acontecem nas regiões infernais do
hinduísmo fazem lembrar os infernos semita-cristãos, bem ao estilo dos infernos
da Divina Comédia, de Dante Alighieri, mas com sua devida diferença, pois
os infernos hindus não são destinos definitivos para a alma. São mais como
purgatórios, onde as almas experimentam uma forma limitada de sofrimento,
determinada pelo seu karma e com propósito corretivo para possibilitar
sua evolução espiritual. Depois de cumprir sua pena cármica, a alma pode sair do
inferno e voltar a participar do ciclo de reencarnação.
Antyesti-kriya, O Último
Sacramento
No hinduísmo, o funeral
é um sacramento (samskara), assim como o nascimento e o casamento. Ele
seria como o sacrifício ou o rito final (antyeshti). É um ritual
executado para que a alma se desapegue do corpo e não corra o perigo de
tornar-se um fantasma (bhuta ou preta), garantindo sua promoção
para um mundo melhor.
A crença nos fantasmas é
muito comum entre os indianos, sejam eles hindus, budistas ou jainistas. O
termo bhuta aplica-se a qualquer classe de espírito desencarnado (bom ou
ruim), assim como ao fantasma de uma pessoa morta. Já o
termo preta indica especificamente esse mesmo espírito no período antes
do término dos ritos funerais pós-mortes. Acredita-se que a alma de um falecido
às vezes vagueia sofrendo como um preta e não consegue renascer. Ou seja,
ela não pode alcançar o destino determinado pelos seus karmas até que os
ritos funerários sejam executados.
Na tradição védica, como
regra, não se enterram os mortos, que são cremados de acordo com injunções das
escrituras. Isso tem como base a crença de que o corpo da jiva é
constituído dos “cinco elementos” da prakriti (natureza material), que
precisam ser devolvidos à sua fonte após a morte. Deles, o fogo, a terra, a água
e o ar pertencem ao corpo denso (o sthula-sharira, que é formado
do anna-maya kosha) e procedem deste mundo físico, enquanto o quinto
elemento, o éter (espaço), pertence à dimensão do corpo sutil
(o sukshma-sharira, que é constituído dos koshas mais
sutis) e procede dos mundos superiores. Quando o corpo é cremado, apenas os
quatro elementos densos são devolvidos às suas respectivas esferas, enquanto o
corpo sutil, juntamente com a alma, retorna às dimensões superiores mais sutis
para a continuação da sua vida pós-morte.
Cerimônia de cremação às
margens do rio Ganges.
Todavia, a cremação não
é o único método prescrito para a remoção do corpo. Crianças até certa idade e
pessoas santas ou iluminadas são enterradas. Por exemplo, um mestre espiritual é
enterrado em uma sepultura chamada de samadhi, onde é colocado sentado em
postura de lótus, em estado de maha-samadhi, para receber a veneração de
seus discípulos ou seguidores. Apesar de a cremação ser o procedimento padrão,
alguns hindus preferem ser sepultados nas águas de um rio sagrado, como o
Ganges, onde as cinzas dos que foram cremados também são jogadas. Acredita-se
que esses rios sagrados purifiquem a alma de seus pecados.
Para algumas pessoas, a
morte pode ser vista como o dia da libertação, celebrada no lugar da data do
aniversário. Até certo ponto, os ritos funerários servem para notificar a alma
que ela de fato está morta.
É possível que uma alma
desorientada, não consciente de que está do outro lado, fique com sua
consciência ainda presa no plano físico. Ela pode observar esse mundo material,
e até mesmo testemunhar o seu próprio funeral. Alguns dos hinos funerários se
dirigem ao falecido, persuadindo-o a abandonar os apegos e continuar sua
jornada.
Os ritos são também para
os vivos, pois permitem que a família se despeça de uma forma respeitável e
digna, que expresse sua dor, perda e outras emoções que naturalmente vêm à tona
neste momento crítico. O significado mais profundo dos ritos funerários se
constitui em fazer a conexão dos mundos sutis interiores
(svarga ou pitri-loka) com o mundo físico exterior
(bhu-loka), e o reconhecimento de que a família não consiste apenas das
gerações vivas, mas também abrange os ancestrais.
Há almas que encarnam
sequencialmente na mesma família. O neto pode ser a reencarnação da alma do avô.
Dessa forma, o karma e o dharma coletivo são inteiramente
resolvidos. Quem está no mundo sutil interior ajuda os parentes que estão no
mundo manifesto. Depois, quando retornam ao mundo exterior, eles se esforçam
para avançar espiritualmente, pois esse progresso só é possível em uma
encarnação física. A cerimônia ritual de união do falecido com seus antepassados
e a veneração anual dos antepassados mantêm aberta a comunicação sutil que
possibilita prosperidade e longevidade para a família.
Os ritos fúnebres hindus
são realizados com os propósitos de propiciar à alma migração segura e
sobrevivência agradável no outro mundo, além de proteger os membros familiares
de contaminações energéticas decorrentes da morte do parente. Segundo as crenças
hindus, quando morre alguém da família, independente de ela estar perto ou
longe, seus parentes ficam poluídos pelo mero processo de sua morte. Essa
contaminação continua até que a alma tenha completado a sua jornada para o outro
mundo e todos tenham se purificado pelos rituais. Até mesmo quem viu o cadáver
ou entrou no local onde ele estava fica, alguma forma,
contaminado.
Quando a pessoa morre,
seu corpo, depois de receber o último banho, é levado para o crematório por seus
amigos e parentes, ao som da entoação dos nomes de Deus. O corpo é cremado
geralmente no mesmo dia, senão um ou dois dias depois. Na pira funerária, que
geralmente é acesa pelo filho mais velho, coloca-se o corpo com os pés em
direção ao sul, que é a direção de Yama, o deus da morte.
De três a dez dias
depois da cremação, as cinzas são coletadas e guardadas em urnas, para serem
espalhadas em vários locais. São misturadas com terra, água e ar, para
simbolizar o retorno do corpo aos elementos.
As Cerimônias
de Sraddha
Na longa lista dos
sacramentos (samskara) do hinduísmo, há determinados ritos que devem ser
executados para aqueles que já partiram do mundo físico. Eles recebem o nome
genérico de sraddha e são executados pela família do falecido, logo
depois do funeral. Consistem de uma série de oferendas cerimoniais em que
preparações de alimentos e libações de água são dedicadas
aos manes, pais ou ancestrais já falecidos.
Isso é algo natural para
os hindus, pois, para eles, nunca houve uma barreira espessa entre os mundos
visível e invisível, entre os ”vivos” e os “mortos”. O contato entre essas duas
dimensões sempre caracterizou essa tradição religiosa, pois consideram-se os
deuses (devas) e os manes (pitris) tão reais como os
humanos.
Nas cerimônias iniciais
de sraddha, chamadas de ekoddishta
sraddha ou preta-kriya, os filhos do falecido cantam mantras e
oferecem preparações à alma que partiu para fornecer-lhes nutrição. São tortas
de arroz, conhecidas como pindas, ou outros ingredientes, como leite,
coalhada etc., que, oferecidos como oblação nos sacrifícios, adquirem uma forma
sutil chamada apurva (“sem precedente”) e se prende ao sacrificador.
Os jivas, envolvidos pela água suprida pelos ingredientes oferecidos em
oblação nos sacrifícios e fortalecidos energeticamente pelos mantras,
desenvolvem um corpo etéreo adequado que permita sua sobrevivência a caminho do
mundo dos ancestrais. Essas oferendas devem ser realizadas durante dez dias.
Cada dia equivale a um mês do período normal de gestação do embrião humano no
ventre.
Quem executa sacrifícios
satisfaz os deuses no paraíso e desfruta com eles. Tornam-se associados úteis
dos deuses e contribuem para o desfrute deles, por meio de sua presença e
serviço naquele mundo. Eles desfrutam em Chandraloka e, com o fim do estoque de
seu mérito, retornam à Terra.
Muitas vezes, quando o
falecido não teve morte natural e consciente, ele, na condição de preta,
pode atormentar os membros de sua família. Então, as oferendas da cerimônia
de sraddha podem tranquilizar a alma. Tais oferendas destinam-se a
garantir a redenção da alma do falecido da condição de fantasma, que é o corpo
de preta, e ajudá-lo a renascer, de acordo com seu karma passado
acumulado. O Garuda Purana (2.13.1-23) explica como a alma do falecido
pode ficar imobilizada por muito tempo na condição de preta, sem corpo e
sentidos físicos. Não pode nascer para desfrutar de seu karma. Então,
nessa condição de preta, ela vaga por todos os lugares, sofre fome e
sede, até que os ritos funerários sejam executados.
Também se explica que,
depois da morte, a alma do falecido adquire o corpo etéreo (ativahika
sharira) de preta (Garuda Purana, 2.10.75-77). E que ela deixa
esse corpo e adquire um corpo pinda-deha, feito
de pindas (Garuda Purana 2.10.82, 2.15.37-38 e 2.15.66-67), como
resultado das oferendas de pinda (tortas ou bolos de arroz), feitas na
cerimônia de ekoddishta sraddha, durante os primeiros dez dias após a
morte.
Entretanto, quando o
corpo pinda-deha também se dissolve, como resultado dos ekoddishtta
sraddha executados mensalmente, durante um ano, a alma está livre para
deixar a dimensão intermediária e entrar no mundo dos antepassados. Nessa
ocasião, realiza-se a cerimônia de sraddha conhecida
como sapindi-karana, que facilita a entrada da alma no mundo dos
ancestrais (pitri-loka) e sua permanência lá a partir de
então.
Ficou bem claro que a
não execução dos sraddhas faz com que haja impedimento no cumprimento da
lei do karma. Cria-se impedimento no karma-vipaka, ou fruição
do karma acumulado.
Considerações
Finais
Sentir medo em face da
experiência inevitável da morte é consequência da ignorância da verdadeira
natureza da alma espiritual, das possibilidades de ela viver em diferentes
dimensões e o próprio processo transformador dessa
experiência. Punar-janma, o renascimento que liga uma vida a outra, reduz
qualquer morte particular a um mero incidente dentro de uma série indefinida de
incidentes.
Então, o que teria valor
para o jivatma eterno não seria seu corpo material temporário e as
parafernálias ligadas a ele, como família, bens materiais e posição social, mas,
sim, a própria essência de eternidade, consciência e bem-aventurança. Assim como
quem consegue algo superior, ele não tem dificuldade alguma de abandonar as
coisas inferiores. Da mesma forma, quem está situado em autoconhecimento,
na plataforma espiritual, consegue facilmente situar-se além dos prazeres
materiais temporários. Na plataforma de autorrealização, o místico também sente
prazer (ramante), mas seu prazer é infinito (anante). Isso é
explicado no Padma Purana, ramante yogino
’nantesatyananda-cid-atmani: “A felicidade dos místicos é ilimitada e
real, pois vem da Verdade Absoluta”.
Porque na plataforma da
autorrealização há o reconhecimento da existência continuada do ser
(sat), da consciência ou conhecimento ilimitados (cit) e da
satisfação estética infinita (ananda), a morte do corpo e a perda dos
prazeres dos sentidos temporários não representam perda. O que ocorre é
manifestação de um ganho maior. Portanto, não há motivo para medo e ansiedade.
Morrer é algo tão natural e normal que jamais se considera “o morto” como tal.
Ele apenas foi para outro lugar, para outra dimensão – mudou de
residência.
Loka-sakshi Dasa, natural de Santa Cruz do Rio Pardo, SP, é discípulo direto de A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada. É versado em sânscrito e possui doutorado em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É conhecido por sua grande erudição e também por contribuir ativamente na difusão da sabedoria védica por todo o Brasil.
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Se gostou deste
material, também gostará do conteúdo destas obras:
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Espaço Ponto de Luz Rosana Rodrigues
www.espacopontodeluz.blogspot.com