sexta-feira, 13 de maio de 2016

Morte e Renascimento no Hinduísmo - Krishnas

Morte e Renascimento no Hinduísmo


Loka-sakshi Dasa






A alma imortal, seus corpos, o fenômeno da morte, os destinos da alma, os sacramentos e cerimoniais aos mortos.

asato ma sad gamaya
tamaso ma jyotir gamaya
mrityor ma ‘mritam gamaya

“Do irreal, conduz-me ao real. Das trevas, conduz-me à luz. Da morte, conduz-me à imortalidade”. (Brihadaranyaka Upanishad 1.3.28)

Esta prece dos Vedas proclama o desejo humano de viver plenamente o real, de ter a consciência iluminada e de sobreviver eternamente, conquistando a morte. Certa ocasião, Yudhisthira Maharaja, um grande rei sábio, foi questionado por Yama, a personificação da morte, com a seguinte pergunta: “O que há de mais maravi­lhoso neste mundo?” Yudhisthira respondeu pronta­mente:

ahany ahani bhutani gacchantiha yamalayam
esha sthavaram icchanti kim acaryam atah para

“Todos os dias, centenas e milhões de entidades vivas entram no reino da morte. Mesmo assim, as que ficam as­piram por uma situação permanente. O que poderia ser mais maravilhoso do que isso?” (Mahabharata, Vana-parva 313.116)

Na milenar tradição védica, esse inconformismo com a morte sempre foi visto como uma indicação da eternidade da alma. Em nosso inconsciente, não podemos aceitar a morte, pois intuímos o fato da nossa imortalidade. Nin­guém aceita facilmente a realidade da morte, porque o que morre de fato é o corpo temporário e não a alma eterna.

Eventualmente, porém, todos temos de confrontar a morte. Para os seguidores da tradição védica, isso não é algo para ser temido. Sabemos que já nascemos e morremos várias vezes. O karma e a transmigração da alma fazem o inevitável parecer algo natural, pois morrer é como adormecer, e nascer é como despertar do sono – algo muito simples.

As escrituras védicas declaram que a alma é imortal: ajo nityah shashvato’ yam, “a alma é não-nascida, eterna e sempre existente”. (Bhagavad-gita 2.20) Ainda assim, sofremos, pois esse é o preço do apego ao corpo material e a tudo o que é impermanente. Com conhecimento, deve-se questionar, discriminar e encontrar a compreensão que torne a morte aceitável. Assim, a morte consciente, como uma elevada e poderosa experiência pessoal, pode dar sentido à vida e levar ao autoconhecimento.

O Ser Eterno e a Morte do Corpo

Segundo A.C. Bhaktivedanda Swami Prabhupada, compreender nossa identidade como algo à parte do corpo é o primeiro passo na autorrealização. Compreender que “eu não sou este corpo, mas, sim, uma alma espiritual” é um entendimento essencial para qualquer pessoa que deseja transcender a morte e entrar no mundo espiritual, que está mais além.





Compreender nossa identidade como algo à parte do corpo é o primeiro passo na autorrealização.

Essa é a preocupação de praticamente todos os místicos, seja no Ocidente, seja no Oriente. Por exemplo, Sri Ramana Maharshi, quando ainda adolescente, foi tomado pelo pensamento de sua morte iminente – o medo existencial do não-ser. Em vez de ser dominado pelo medo da morte, ele aceitou a possibilidade da morte e começou a indagar sobre o mistério da vida, utilizando o método muito simples chamado atma-vicharana, autoindagação ou indagação pelo atma (o Si-mesmo), que consistia em fazer para si mesmo uma única e constante pergunta: ko’ ham, ”quem sou eu?”.

Contudo, embora se possa compreender teoricamente que não somos estes corpos, mas o si-mesmo, que é consciente do corpo, ainda assim todos se identificam com a vestimenta corpórea. A tradição védica busca, portanto, na experiência prática, estruturar a vida da pessoa, por meio de vários caminhos (margas), para que ela possa experienciar a sua posição constitucional como alma espiritual (atma).

No Oriente, entretanto, há outras opiniões sobre a natureza da alma. No budismo, por exemplo, não existe a crença em uma entidade permanente, em uma alma, ou atma, que seria o sujeito da morte e do renascimento. Isso tem sido tema de debates intensos, pois o budismo sustenta a doutrina do anatta ou anatmavada, a “não-alma”.




No budismo, diferente da cultura védica, não existe a crença em uma entidade permanente.

Diferentemente dos seguidores da cultura védica, que acreditam no “ser”, na “condição de isto” (tat-tva), os budistas acreditam no “tornar-se”, na “condição de assim” (tatha-ta). Dessa forma, no budismo, não há ator além da ação, nem perceptor além da percepção. Em outras palavras, não há um sujeito consciente por detrás da consciência. Isso, em resumo, leva ao conceito de ação (karma) sem ator (karta). Então, em última instância, não pode haver transmigração ou renascimento da alma, mas apenas um processo de transformação perpétua dos agregados (skandhas), compostos da forma, percepção, consciência, ação e conhecimento, que manifestam os sintomas do que conhecemos por vida.

No conhecimento védico, em contraste, a vida não é vista como mero sintoma de condições que a torna possível, mas, sim, como decorrente da presença da própria alma espiritual. Para os seguidores da sabedoria védica, acreditar no karma sem aceitar os conceitos da alma individual (jivatma) e seu renascimento (punar-janma) é algo desconcertante.

Sri Krishna estabelece na Bhagavad-gita, inequivocamente, a imortalidade da alma quando declara, para Seu amigo e discípulo Arjuna, como segue:

na tu evaham jatu nasam na tvam neme janadhipah
na caiva na bhavishyamah sarve vayam atah param

“Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem tu, nem todos estes reis, e, no futuro, nenhum de nós deixará de existir”. (Bhagavad-gita 2.12)

avinashi tu tad viddhi yena sarvam idam tatam
vinasham avyayasyasya na ka cit kartum arhati

“Deves saber que aquilo que penetra o corpo inteiro é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a alma imperecível”. (Bhagavad-gita 2.17)

Não é possível entender os conceitos da morte e do renascimento no hinduísmo sem saber a diferença entre a alma permanente (atma) e o corpo material temporário. A Bhagavad-gita explica a natureza da alma com a seguinte ana­logia:

yatha praka ayaty ekah kritsnam lokam imam ravih
kshetram kshetri tatha kritsnam prakashayati bharata

“Assim como o Sol ilumina sozinho todo este mundo, a entidade viva, sozinha dentro do corpo, ilumina o corpo inteiro através da consciência”. (Bhagavad-gita 13.34)





Sri Krishna estabelece na Bhagavad-gita, inequivocamente, a imortalidade da alma.

A consciência evidencia concretamente a presença da alma dentro do corpo. Em um dia nublado, o Sol pode não estar visível, mas sabemos que ele está presente no céu, através da presença da luz solar. Analoga­mente, pode­mos não ser capazes de perceber diretamente a alma, mas podemos concluir que ela existe pela presença da consciência. Na ausência da consciência, o corpo é simplesmente um monte de matéria morta. Somen­te a pre­sença da consciência faz com que esse monte de matéria morta possa respirar, falar, amar e temer.

Es­senci­almente, o corpo é um veículo para a alma, por meio do qual ela pode satisfazer seus desejos. A alma dentro do corpo está “sentada em uma máquina feita de energia material [yantrarudhani mayaya]”. (Bhagavad-gita 18.61) Ela se identi­fica falsamente com o corpo, transportando suas diferentes con­cepções da vida, de um corpo para outro, assim como o ar transporta os aromas. Do mesmo modo que um automóvel não pode funcionar sem um motorista, o corpo material não pode funcionar sem a presença da alma.

Bhagavad-gita explica claramente a diferença entre o que é real e o que é irreal, nasato vidyate bhavona bhavo vidyate satah: ”Não há continuidade para o inexistente, nem cessação para o exis­ten­te”. (Bhagavad-gita 2.16)

O corpo material vem a existir em certo momento, cresce, amadurece, gera subprodutos (filhos) e gra­dualmente degenera e morre. O corpo físico, neste sentido, é irreal, pois ele desaparecerá no devido tempo. No entanto, apesar de todas as mudanças do corpo material, a consciência, o sintoma da alma que está dentro, perma­nece imutável. Conclui-se, portanto, que a consciência possui a qualidade inata de permanência, que lhe permite sobreviver às mudanças e à destruição do corpo. Sri Krishna afirma, na jayate mriyate va kadacin na hanyate hanyamane sharire: ”Para a alma, nunca há nascimento nem morte. Ela não é ani­quilada quando o corpo é aniquila­do”. (Bhagavad-gita 2.20)

Entretanto, se a alma “não é aniquilada quando o corpo é aniquilado”, o que acontece com ela? Segundo a Bhagavad-gita, ela entra em outro corpo:

dehino‘ smin yatha dehe kaumaram yauvanam jara
tatha dehantara-praptir dhiras tatra na muhyati

“Assim como, neste corpo, a alma corporificada seguidamente passa da infância à juventude e à ve­lhice; chegando a morte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoa ponderada não fica con­fusa com essa mudança”. (Bhagavad-gita 2.13)

vasamsi jirnani yatha vihaya navani grihnati naro‘ parani
tatha sharirani vihaya jirnany anyani samyati navanidehi

“Da mesma forma que alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos materi­ais, aban­donando os velhos e inúteis”. (Bhagavad-gita 2.22)





Diferentes corpos são como diferentes vestes para a alma.

Dessa forma, a alma permanece enredada no samsara, o ciclo interminável de nascimentos e mortes, pois jatasya hi dhruvo mrityurdhruvam janma-mritasya ca: ”Para aquele que nasceu, a morte é certa, e, para aquele que morreu, o nascimento é certo”. (Bhagavad-gita 2.27)

As entidades vivas nascem perpetuamente em várias espécies de vida, de acordo com a natureza de seus desejos, pois, segundo a Bhagavad-gita:

yam yam vapi smaram bhavam tyajaty ante kalevaram
tam tam evaiti kaunteya sada tad-bhava-bhavitah

“Qualquer que seja o estado de existência de que alguém se lembre ao deixar o corpo, esse mesmo estado ele alcançará impreterivelmente”. (Bhagavad-gita 8.6)

Tudo o que pensamos e fazemos durante nossa vida deixa uma impressão (vrittis) na mente, e a soma total de todas essas impressões (samskaras) influencia nossos pensamentos finais na hora da morte.





A soma das impressões em nossa mente na hora da morte determina nosso próximo nascimento.

Essas influências são causadas pelos gunas, ”cordas”, ou “modos da natureza material”. Eles são as três qualidades básicas constitutivas da natureza material, assim como a luz branca constitui-se de três cores básicas. Os gunas são: rajas, caracterizado por paixão, atividade ou expansão; tamas, que se caracteriza por ignorância, inação ou escuridão; e sattva, identificado por bondade, harmonia ou luz. Sattva conduz para cima, rajas mantém no meio, tamas leva para baixo.

Bhagavad-gita esclarece que essas qualidades da natureza material funcionam sob o controle divino e prendem as almas neste mundo, daivi hy esha guna-mayi mama maya duratyaya: “Esta energia divina, que consiste nos três modos da natureza (gunas), é difícil de ser superada”. (Bhagavad-gita 7.14) Sua influência sobre as almas encarnadas é total:

sattvam rajas tama iti gunah prakriti-sambhavah
nibadhnanti maha-baho dehe dehinam avyayam

“A natureza material consiste de três modos – bondade (sattva), paixão (rajas) e ignorância (tamas). Ao entrar em contato com a natureza, ó Arjuna de braços poderosos, a entidade viva eterna condiciona-se a esses modos”. (Bhagavad-gita 14.5)

Consequentemente, de acordo com a qualidade de nossos pensamentos na hora da morte, recebemos da natureza material um corpo adequado. A Bhagavad-gita explica como a influência dos gunas na consciência, e o apego a eles, determinam a natureza do nascimento da pessoa:

yada sattve pravriddhe tu pralayam yati deha-bhrit
tadottama-vidam lokan amalan pratipadyate

“Quando alguém morre no modo da bondade (sattva), atinge os mundos superiores e puros, onde residem os grandes sábios”. (Bhagavad-gita 14.14)

rajasi pralayam gatva karma-saṅgishu jayate
tatha pralinas tamasi mudha-yonishu jayate

“Quando alguém morre no modo da paixão (rajas), nasce entre os que se ocupam em atividades fruitivas. E quando morre no modo da ignorância (tamas), nasce no reino animal”. (Bhagavad-gita 14.15)

purushah prakriti-stho hi bhunkte prakriti-jan gunan
karanam guna-sango’ sya sad-asad-yoni-janmasu

“Dessa forma, a entidade viva dentro da natureza material segue os caminhos da vida, desfrutando os três modos da natureza. Isso decorre de sua associação com essa natureza material. Assim, ela se encontra com o bem e o mal, entre as várias espécies de vida”. (Bhagavad-gita 13.22)

O tipo de corpo que alguém possui agora é a expressão tanto da influência causada pelos gunas na consciência, quanto do mérito acumulado das ações (karma) em vidas passadas. Esse karma é definido como, bhuta-bhavodbhava-karo visargah karma-samjñitah: “Karma é a ação que desencadeia o desenvolvimento dos corpos materiais das entidades vivas”. (Bhagavad-gita 8.4)

Assim, a Bhagavad-gita explica que:

shrotram cakshuh sparshanam ca rasanam ghranameva ca
adhishthaya mana cayam vishayan upasavate

“A entidade viva, aceitando esse outro corpo grosseiro, obtém um certo tipo de ouvido, olho, língua, nariz e sentido do tato, que se agrupam ao redor da mente. Ela, então, desfruta de um conjunto específico de objetos dos sentidos”. (Bhagavad-gita 15.9)

Portanto, segundo o hinduísmo tradicional, o caminho da reencarnação nem sempre leva para o alto; o ser hu­mano não tem garantia de um nascimento humano em sua próxima vida. Por exemplo, se alguém morre com mentali­dade de um cachorro, então, em sua próxima vida, receberá os olhos, ouvidos, nariz etc. de um cachor­ro, para que ele desfrute de prazeres caninos. Krishna confirma tal destino dizendo, tatha pralinas tamasi mudha-yonishu jayate: “Quando morre no modo da ignorância, nasce em corpo irracional, como de um animal”. (Bhagavad-gita 14.15)






Se uma alma desperdiça sua vida humana, pode vir em nascimentos animais posteriormente.

Na Bhagavad-gita, encontramos que os seres humanos que não indagam sobre sua natureza metafísica, supe­rior, são compelidos pela lei do karma a continuar o ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos, apare­cendo ora como humanos, ora como animais ou plantas. Nossa existência no mundo material deve-se às múltiplas reações cármicas desta vida e das anteriores, e o corpo humano fornece o instrumento através do qual a alma pode escapar. Por utilizar apropriadamente a forma humana de vida, procuram-se resolver todos os problemas da vida (nascimento, velhice e morte) e quebrar o ciclo interminável de reencarnações. Essa seria a missão da vida humana, athato brahma-jijñasa: ”Questionar sobre a Verdade Absoluta”. (Vedanta-sutra 1.1.1) 

Se, entretanto, uma alma, tendo se desenvolvido até a plataforma humana, desperdiça sua vida ocupando-se unicamente em atividades para o pra­zer dos sentidos, ela pode facilmente criar karma suficiente nesta vida atual para manter-se enredada no ciclo de nascimentos e mortes, por muitas vidas. E há o perigo de talvez nem todas elas serem humanas.

Os Corpos ou Coberturas da Alma

Na tradição védica, identificam-se os corpos materiais da alma com os koshas, termo em sânscrito que significa “invólucro, cobertura, bainha, vaso ou recipiente”. O conceito dos “cinco invólucros” (pañca-kosha) constitui um paradigma quântico que vê a alma condicionada e acondicionada em um organismo psicofísico multidimensional. Isso pode ser encontrado nos textos das Upanishads (Taittiriya Upanishad 2.2-5, 3.10.5; Sarvarara Upanishad 2; Tejobindu Upanishad 4.75)

Esses invólucros (kosha) são roupagens que revestem a alma quando ela está condicionada neste mundo material. A Bhagavad-gita explica que a identidade da alma é ser eternamente parte integrante fragmentária da Divindade:

mamaivamsho jiva-loke jiva-bhutah sanatanah
manah-shashthanindriyani prakriti-sthani karshati

“As almas condicionadas neste mundo são Minhas eternas partes fragmentárias. Por força da vida condicionada, elas empreendem árdua luta com os seis sentidos, entre os quais se inclui a mente”. (Bhagavad-gita 15.7)

Assim como o corpo físico permite que ela viva na dimensão física, os invólucros ou corpos sutis permitem que ela possa viver simultaneamente em vá­rios planos de existência, como nos sonhos, transes, desdobramentos e regressões psíquicas, e, depois da morte, viver nas dimensões ou mundos sutis.





Além do corpo grosseiro, a alma tem um corpo sutil enquanto está neste mundo.


Os koshas, em ordem de maior sutileza, são: (1) anna-maya kosha, ”invólucro feito de ali­mento”, que é o corpo físico, também chamado de sthula-sharira ”corpo denso”; (2) prana-maya kosha, “invólucro feito de prana, energia vital”, que é o corpo vital, o qual é etéreo e co-existe com o corpo físico, como sua fonte de energia e vitalidade, e faz a conexão com os invólucros mais sutis e aloja os sentidos; (3) mano-maya kosha, ”invólucro feito de mente”, que é o corpo emocional ou o sentido interno, onde se processam as emoções, sentimentos, pensamentos e desejos; (4) vijñana-maya kosha, “invólucro feito de sabedoria”, que é o corpo intelectual, onde reside a memória, a discriminação, a criatividade, a compreensão e a intuição; e (5) ananda-maya kosha, “invólucro feito de bem-aventurança”, que é o corpo causal, onde pode ser realizada a identidade e individualidade da alma, o local da consciência pura ou transpessoal.

O termo “corpo sutil” geralmente indica os invólucros que constituem o corpo sutil, não-físico, da alma, chamado em sânscrito de sukshma-sharira, e inclui os seguintes invólucros: prana-maya kosha, mano-maya kosha e o vijñana-maya kosha. Ele permite que a alma atue na dimensão astral, ou plano astral.

Na hora da morte, envolvida pelos invólucros (koshas) energético (prana-maya), emocional (mano-maya), intelectual (vijñana-maya) e causal (ananda-maya) do corpo sutil, a alma deixa o seu invólucro físico (anna-maya).

O Fenômeno da Morte

Na tradição védica, descreve-se a morte como maha-prasthana, “a grande partida”. É uma experiência muito intensa e determinada pela qualidade da vida da pessoa. Há quem tenha visões, que variam da experiência de encontrar-se com seres assustadores – descritos como yamadutas, “mensageiros da morte”, que arrancam à força a alma apegada ao corpo –, à experiência de ser conduzido harmoniosamente por um túnel de luz, em cujo fim há seres divinos. Sujeitos que tiveram experiências de quase-morte nos dão testemunho desses encontros transformadores.




Experiências de quase morte evidenciam as descrições das escrituras.

Uma senhora que “morreu” durante um trabalho de parto, mas foi revivida imediatamente por proce­dimentos médicos, descreveu: “Era muita energia – uma luz incrível. Eu praticamente flutuava nela. Minha consciência foi tomada por sentimentos de amor incondicional, de segurança completa, de perfeição total. Então, sentia que era imortal, que era quase in­destrutível. Não podia mais ser ferida, nem me perder. O mundo me parecia perfeito”.

Centenas de pessoas falam de experiências similares, confirmando o que as tra­dições do Oriente sempre descreveram – que a morte pode ser uma transição bem-aventurada, iluminada, de um estado para outro, tão simples e natural como a troca de roupas. Algo completamente diferente das alternativas mórbidas e infernais que geram tanto medo e insegurança nas pessoas.

A morte é uma série de mudanças pelas quais todos passam, e a separação da alma do seu corpo físico torna-se o ponto inicial da jornada para uma vida nova. A morte não é o fim da personalidade e da autoconsciência; ela meramente abre a porta para outra forma de vida. A morte, quando experimentada de forma consciente, pode tornar-se o portal para a plenitude da vida.

Nascimento e morte são meros ardis de maya, o aspecto ilusório da energia material. Na realidade, vida é morte, e morte é vida. Quem nasceu já começou a morrer, e quem morreu já começou a viver. Isso é o que afirmam as escrituras védicas, jatasya hi dhruvo mrityur dhruvam janma mritasya ca: “Certa é a morte do que nasce, e certo é o nascimento do que morre”. (Bhagavad-gita 2.27)

Quando, por algum motivo, a alma (jivatma ou jiva) tem de abandonar definitivamente o corpo físico (anna-maya-kosha), os canais (nadis) onde circulam os ares vitais (pranas) perdem o vigor e ficam incapacitados de expandir-se e contrair-se para exalar e inalar o ar. Assim, o corpo perde sua harmonia e fica agitado. Então, o ar inalado não sai adequadamente, nem o ar exalado entra novamente no corpo. Assim, a respiração cessa. E, com a parada da respiração, surge a inconsciência, e considera-se, então, que ocorreu a morte.

Nesse momento, todos os desejos e ideias se retraem, pois o jiva carrega dentro de seu corpo sutil (sukshma-sharira) todos os seus vasanas, que são os desejos ou impressões mentais do passado. Com a morte do corpo físico, os pranas, que carregam as coberturas mais sutis – e, dentro delas, a própria alma – saem do corpo e vagam pelo ar.

Considera-se que a atmosfera está saturada de uma enormidade de pranas que levam dentro de si os jivas, que, por outro lado, comportam potencialmente dentro delas todas as suas experiências de vida. Naquele momento, o si-mesmo, ou alma individual, com todos os vasanas dentro de si, passa a ser denominada de preta, “quem foi para o outro mundo”.

Nas Upanishads e na Bhagavad-gita, encontramos mais detalhes de como a alma muda de corpos:

tam utkramantam prano’nutkramati pranamanutkramantam sarve prana anutkramanti, sa-vijñano bhavati sa-vijñanamevanvavakramati, tam vidya-karmani samanvarabhete purva-prajña ca

“Quando a alma parte do corpo, o ar vital a segue; e quando o ar vital parte, é acompanhado de todos os sentidos. Então, a alma adquire um tipo específico de consci­ência e passa ao corpo adequado a essa consciência. Ela é seguida pelo conhecimento, karma e impressões latentes passadas”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.2)

tad yatha trina-jalayuka trinasyantam gatva anyam akramamakramya atmanam upasamharati, evam evayam atma idam shariram nihatya avidyam gamayitva anyam akramam akramya atmanam upasamharati

“Assim como uma lagarta na grama, chegando ao fim da folha, retrai-se e busca outro suporte; este atma, deixando o corpo atual, que fica inconsciente, retrai-se e aceita um novo corpo”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.3)

vasamsi jirnani yatha vihaya navani grihnati naro ’parani
tatha sharirani vihaya jirnany anyani samyati navanidehi

“Assim como alguém veste roupas novas, abandonando as antigas, a alma aceita novos corpos materiais, abandonando os velhos e inúteis”. (Bhagavad-gita 2.22)

tad yatha peshas-kari peshaso matram upadayanyannavataram kalyanataram rupam tanutei, evam evayam atma idam shariramnihatya avidyam gamayitva anyam navataram rupam kurute pitryam va gandharvam vadaivam va prajapatyam va brahmam va anyesham va bhutanam

“Assim como um artesão, pegando um pouco de ouro, molda outra forma – mais nova e melhor –, este atma, deixando o corpo atual, que fica inconsciente, cria outra forma – mais nova e melhor –, como a dos manes (pitris), cantores celestiais (gandharvas), deuses (devas), prajapatis e Brahma”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.4)

yatha-kari yatha-cari tatha bhavati, sadhu-kari sadhur bhavati, papa-kari papo bhavati, apunyah punyena karmana bhavati papah papena

“Como faz e age, assim a pessoa se torna. Fazendo o bem, ela se torna boa, e fazendo o mal, ela se torna má; torna-se virtuosa por ações virtuosas e torna-se viciosa por ações viciosas”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.5)

Os Destinos da Alma

Depois da morte, segundo a natureza de sua consciência e o mérito cármico de suas atividades passadas, a pessoa toma rumos diversos. A Bhagavad-gita descreve dois caminhos principais: devayana e pitriyana. O primeiro deles, chamado de devayana, é o caminho dos deuses, que é trilhado por almas espiritualmente avançadas. Essas levaram uma vida extremamente pura, devotando-se integralmente à meditação no Absoluto (brahman), mas, apesar de possuírem conhecimento espiritual, não conseguiram obter autorrealização plena (jiva-mukti) antes da morte. Elas, então, são conduzidas para Brahmaloka, o sistema planetário mais elevado do universo material, e, de lá, no devido tempo, obtêm a libertação. Esse caminho é o caminho que não tem volta e é descrito na Chandogya Upanishad:

tad ya ittham viduh ye ceme ’ranye sraddha tapaity upasate te ’rcisham abhisambhavanty arcisho ’harahna aparyamanapakshamapuryamanapakshad yan shad udann eti masams tan

“Então, aqueles que estão em conhecimento e aqueles que, vivendo na floresta, seguem uma vida de fé e austeridades vão para a luz, da luz para o dia, do dia para a quinzena clara, da quinzena clara para os seis meses em que o Sol está ao norte”. (Chandogya Upanishad 5.10.1)

samebhyah samvatsaram samvatsarad adityam adityaccandramasam candramaso vidyutam tat purusho ’manavah sa enan brahma gamayatiesha devayanah pantha iti

“Dos meses, eles vão para o ano, do ano para o Sol, do Sol para a Lua, e da Lua para o relâmpago. Lá, uma pessoa não humana conduz a alma para o Brahman. Esse é o caminho dos deuses”. (Chandogya Upanishad 5.10.2)

O segundo, conhecido como pitriyana, é o caminho dos antepassados, que é seguido pelas almas que, seguindo os rituais prescritos nas escrituras, foram muito caridosas e piedosas, cultivaram desejo pelo resultado de suas caridades, austeridade, votos e adoração. Seguindo esse caminho, elas são conduzidas para Chandraloka, a região lunar, onde podem desfrutar de imensa felicidade como recompensa por suas ações virtuosas. Entretanto, quando o saldo cármico se exaure, elas têm de voltar para a Terra, visto ainda terem desejos terrenos. Descreve-se esse caminho também na Chandogya Upanishad:

atha ya ime grama ishtapurte dattam ity upasate tedhumam abhisambhavanti dhumad ratrim ratrer aparapaksha aparapakshad yan shaddakshinaiti masams tan naite samvatsaram abhiprapnuvanti

“Por outro lado, aqueles que vivem em vilas, praticando sacrifícios e trabalhos de utilidade pública e de caridade, vão para a fumaça (dhuma), da fumaça para a noite (ratri), da noite para a quinzena escura, da quinzena escura para os seis meses em que o Sol está ao sul. De lá, eles não alcançam o ano”. (Chandogya Upanishad, 5.10.3)

masebhyah pitrilokam pitrilokad akasham akashaccandramasam

“Dos meses, eles vão para o mundo dos antepassados, do mundo dos antepassados, para o espaço, do espaço para a Lua”. (Chandogya Upanishad 5.10.4)

tasmin yavat sampatam ushitvathaitam evadhvanampunar nivartante

“Residindo ali até esgotar o resultado de suas ações, voltam pelo mesmo caminho por onde vieram”. (Chandogya Upanishad 5.10.5)




Alma de um yogi deixa o corpo e procede para a Lua, de onde terá que voltar.

Além desses dois caminhos, há um terceiro caminho, que conduz ao inferno, trilhado por almas que levaram uma vida impura e pecaminosa, com consciên­cia degradada, e que executaram atividades proibidas pelas escrituras.

Depois de alcançarem umbrais ou dimensões infernais, elas renascem em espé­cies inferiores, muitas vezes animais e vegetais, para sofrerem e satisfazerem seus de­sejos inferiores. Isso é explicado na mesma Upanishadatha ya iha kapuya-carana abhyashoha yat te kapuyam yonim apadyeran shva-yonim va sukara-yonim va candala-yonimva: “Mas aqueles cujo resíduo cármico é mau, logo nascem em ventres inferiores, como o de um cachorro, porco ou pária”. (Chandogya Upanishad 5.10.7) Em todo caso, depois da expiação de suas atividades pecaminosas, renascem em corpos humanos.

Os místicos yogis ou bhaktas que alcançaram a perfeição espiritual e se libertaram ainda em vida (ji­van-muktas) não são conduzidos por nenhum desses caminhos, mas, de acordo com a natureza de sua libertação – se ela é impessoal ou pessoal –, obtêm o destino su­premo (param gati), fundem-se na existência imanifesta do Absoluto (param jyoti) ou são resgatados pessoalmente pela Personalidade da Divindade (Bhagavan), que os abriga em Sua morada espiritual (param dhama).

Compara-se o morrer com o dormir, e as experiências do pós-morte, com os so­nhos. Assim como os pensamentos e ações acontecidos no estado de vigília determinam a natureza dos sonhos; depois da morte, a alma experimenta o resultado dos pensamentos acalentados e das ações executadas durante sua vida na Terra. As expe­riências do pós-morte são reais para a alma, assim como um sonho é real para o sonha­dor, e ninguém pode determinar a sua duração.

Segundo as escrituras védicas, algumas almas renascem como seres humanos logo depois da morte, sem passar pela experiência do paraíso ou inferno. A questão de renascimento da alma em formas inferiores à humana, apesar de ser considerada um lapso, não constitui um retrocesso na evolução espiritual da alma para o autoconheci­mento ou amor místico. O que deve ser compreendido é que a próxima vida é determi­nada pela consciência da pessoa na vida presente, que, por sua vez, determinaria o último pensa­mento da pessoa na hora da morte. O último pensamento do moribundo inevitavelmente reflete seu desejo mais íntimo. A Bhagavad-gita afirma, yam vapi smaram bhavam tyajaty antekalevaram, tam evaiti kaunteya sada tad-bhava bhavitah: “Qualquer que seja o estado de existência do qual alguém se lembre ao deixar o corpo, ó filho de Kunti, esse mesmo estado ele alcançará impreterivelmente”. (Bhagavad-gita 8.6) 

Krishna também descreve a posição daqueles que adotam bhakti, o caminho da devoção pura, e dependência à Personalidade da Divindade, naiti sriti partha janan yogi muhyati kashcanatasmat sarveshu kaleshu yoga-yukto bhavarjuna: “Os devotos que conhecem estes dois caminhos [devayana e pitriyana], ó Arjuna, nunca se confundem. Portanto, mantém-te sempre fixo na devoção”. (Bhagavad-gita 2.27) Na posição da Suprema Personalidade da Divindade, Krishna também afirma, ananya-cetah satatam yo mam smarati nityashah, tasyaham sulabhahpartha nitya-yuktasya yoginah: ”Ó filho de Pritha, aquele que se lembra de Mim sem desvios, Me alcança facilmente, por causa de sua ocupação constante”. (Bhagavad-gita 8.14)

Conceitos Hindus do Pós-morte

As Upanishads falam da essência imutável e consciente de todos os seres, plurais ou singulares, como a “alma” ou o “si-mesmo”. Isso, em sânscrito, recebe o nome de atma (ou atman) Essa alma seria o “ser interior consciente” dentro de cada um de nós, identificada ontologicamente (quando a sua natureza de “ser” ou “existir”) como Brahman. O Brahman seria o Ser absoluto e supremo, a Divindade em Seu aspecto unitário, além de todas as particularidades. Contudo, quando essa mesma Divindade su­prema, identificada ontologicamente com o Brahman, é observada do ponto de vista da consciência (psicologicamente), é descrita como o Atma Supremo. Por isso, as Upanishads descrevem a unidade dos dois, pois se tratam de dois aspectos da mesma realidade, sa va ayam atma brahma: “Este Atma é, na verdade, o Brahman”. (Brihadaranyaka Upanishad 4.4.5)

Do ponto de vista do Absoluto, Atma é o próprio Paramatma, o Si-mesmo Supremo, a Superalma, a Divindade em Sua onipresença e onisciência. No entanto, quando observado da perspectiva relativa e individual, da pluralidade dos seres ou centelhas espirituais, atma é jivatma, a alma ou entidade viva consciente individual. A alma individual (jivatma) seria igual à Divindade quanto ao “ser” (sat), mas seria dife­rente quanto à “consciência” (cit).

Nas Upanishads, mostram-se as diferenças entre dois tipos de almas – ambas eternas, mas uma Absoluta, e outras relativas; uma singular, e outras plurais; uma independente, e outras dependentes, nityo nityanam cetanash cetananam, eko bahunam yo vidadhai kaman: “Eterno entre os eternos, Consciente entre os conscientes. Um entre os muitos, Ele satisfaz os desejos de todos”. (Katha Upanishad 5.13)

Apesar da sua natureza espiritual e transcendente, apesar de seu ser não poder ser afetado pelas variações do tempo e espaço, a consciência do jivatma, por ser fragmentária, quando se esquece de sua relação com o Paramatma, é influenciada pela energia material. Com isso, ele se envolve no ciclo de samsara (roda de nas­cimentos e mortes). 

O que prende todos no ciclo de samsara é a lei do karma. Em sua forma mais simples, a lei do karma age impessoalmente, como uma lei natural, assegu­rando que toda ação, seja ela boa ou má, eventualmente retorne ao indivíduo na forma de recompensa ou punição proporcional à natureza da ação executada.




Ilustração cartunesca da lei do karma.

A necessidade de “colher os frutos do karma” é o que obriga os seres humanos a nascer novamente (punar-janma), reencarnando em vidas sucessivas. Em outras pala­vras, se alguém morre antes de colher os frutos de suas ações passadas, o processo cár­mico forçará o seu retorno em vida futura. Voltar em outra vida também possibilita que as forças cármicas recompensem ou punam a pessoa através das circunstâncias de seu nascimento. Assim, por exemplo, quem foi generoso em uma vida poderá retornar como alguém muito próspero na sua próxima encarnação.

Para todas as tradições religiosas do Oriente, a emancipação na hora da morte constitui a meta suprema de todos os esforços humanos. Considerando a sua diversidade religiosa, o hinduísmo, da execução de sofisticados rituais, passando por formas austeras de disciplinas de autoconhecimento, yoga e meditação e chegando à devoção mística, busca várias formas de libertação.

O ritualismo do karma-marga (caminho das ações fruitivas), representado pela tradição sacerdotal dos brahmanas, busca, por meio da correta hermenêutica das escrituras védicas, a execução adequada dos ritos e a entoação correta dos mantras, para elevar o praticante às dimensões celestiais dos deuses e depois obter melhor renascimento neste mundo. Nessa tradição materialista, não se busca o fim do ciclo de nascimentos e mortes, mas, sim, obter a maior felicidade possível.

A tradição gnóstica do hinduísmo, o jnana-marga (caminho do conhecimento), representada principalmente pela escola smarta do Vedanta Advaita, considera que a meta final da existência é alcançar moksha, termo sânscrito que indica a libertação do ciclo infinito de nascimentos e mortes. O que acontece com a pessoa quando ela obtém moksha? Nessa tradição, acredita-se que, com moksha, atma individual funde-se no Brahman universal. Utiliza-se a imagem da gota d’água que cai no oceano e perde sua individualidade. A gota torna-se igual ao oceano. Apesar de ser muito utilizada, essa metáfora não expressa bem o sentido de fundir-se. Em vez da perda da individualidade, a compreensão das Upanishads é a de que o atma nunca existe separado do Brahman. Portanto, o sentido de separação é que é ilusório, e moksha é o despertar desse sonho de separação.

A tradição mística do yoga-marga (caminho do misticismo), representada por austeros renunciantes, busca, por meio do controle das funções psicofísicas, elevar a consciência para o estado de samadhi, transe místico que conduz ao moksha, a libertação do ciclo de nascimentos e mortes.

A tradição devocional do bhakti-marga (caminho da devoção amorosa), por sua vez, rejeita as posturas impessoais, tanto do ritualismo brâmane como do Vedanta Advaita, com sua ênfase intelectual nas afirmativas unitárias das Upanishad. Nessa tradição, Deus é visto como uma Deidade pessoal eterna, supremamente amorosa e que, por Sua graça, corresponde à adoração devocional de Seu devoto. O pós-morte no teísmo devocional não é uma bem-aventurança estática e abstrata, causada pela fusão da identidade individual da alma no oceano da refulgência do Brahman. Pelo contrário, a tradição devocional considera que as almas libertas participam eternamente de uma relação bem-aventurada com a Divindade, em Sua morada eterna, o Céu espiritual (param-vyoma). Esse mundo místico de amor espiritual, de alguma forma, lembra o Paraíso eterno das religiões ocidentais, mas não deve ser confundido com o paraíso temporário dos deuses (devas) e dos antepassados (pitris).

Juntamente com a existência de regiões celestiais, destinadas aos justos e piedosos, podemos também encontrar no hinduísmo o conceito bem desenvolvido de dimensões infernais, nas quais as pessoas excepcionalmente pecaminosas são punidas psiquicamente. Muito dos tormentos que acontecem nas regiões infernais do hinduísmo fazem lembrar os infernos semita-cristãos, bem ao estilo dos infernos da Divina Comédia, de Dante Alighieri, mas com sua devida diferença, pois os infernos hindus não são destinos definitivos para a alma. São mais como purgatórios, onde as almas experimentam uma forma limitada de sofrimento, determinada pelo seu karma e com propósito corretivo para possibilitar sua evolução espiritual. Depois de cumprir sua pena cármica, a alma pode sair do inferno e voltar a participar do ciclo de reencarnação.

Antyesti-kriya, O Último Sacramento

No hinduísmo, o funeral é um sacramento (samskara), assim como o nascimento e o casamento. Ele seria como o sacrifício ou o rito final (antyeshti). É um ritual executado para que a alma se desapegue do corpo e não corra o perigo de tornar-se um fantasma (bhuta ou preta), garantindo sua promoção para um mundo melhor.

A crença nos fantasmas é muito comum entre os indianos, sejam eles hindus, budistas ou jainistas. O termo bhuta aplica-se a qualquer classe de espírito desencarnado (bom ou ruim), assim como ao fantasma de uma pessoa morta. Já o termo preta indica especificamente esse mesmo espírito no período antes do término dos ritos funerais pós-mortes. Acredita-se que a alma de um falecido às vezes vagueia sofrendo como um preta e não consegue renascer. Ou seja, ela não pode alcançar o destino determinado pelos seus karmas até que os ritos funerários sejam executados.

Na tradição védica, como regra, não se enterram os mortos, que são cremados de acordo com injunções das escrituras. Isso tem como base a crença de que o corpo da jiva é constituído dos “cinco elementos” da prakriti (natureza material), que precisam ser devolvidos à sua fonte após a morte. Deles, o fogo, a terra, a água e o ar pertencem ao corpo denso (o sthula-sharira, que é formado do anna-maya kosha) e procedem deste mundo físico, enquanto o quinto elemento, o éter (espaço), pertence à dimensão do corpo sutil (o sukshma-sharira, que é constituído dos koshas mais sutis) e procede dos mundos superiores. Quando o corpo é cremado, apenas os quatro elementos densos são devolvidos às suas respectivas esferas, enquanto o corpo sutil, juntamente com a alma, retorna às dimensões superiores mais sutis para a continuação da sua vida pós-morte. 





Cerimônia de cremação às margens do rio Ganges.

Todavia, a cremação não é o único método prescrito para a remoção do corpo. Crianças até certa idade e pessoas santas ou iluminadas são enterradas. Por exemplo, um mestre espiritual é enterrado em uma sepultura chamada de samadhi, onde é colocado sentado em postura de lótus, em estado de maha-samadhi, para receber a veneração de seus discípulos ou seguidores. Apesar de a cremação ser o procedimento padrão, alguns hindus preferem ser sepultados nas águas de um rio sagrado, como o Ganges, onde as cinzas dos que foram cremados também são jogadas. Acredita-se que esses rios sagrados purifiquem a alma de seus pecados.

Para algumas pessoas, a morte pode ser vista como o dia da libertação, celebrada no lugar da data do aniversário. Até certo ponto, os ritos funerários servem para notificar a alma que ela de fato está morta.

É possível que uma alma desorientada, não consciente de que está do outro lado, fique com sua consciência ainda presa no plano físico. Ela pode observar esse mundo material, e até mesmo testemunhar o seu próprio funeral. Alguns dos hinos funerários se dirigem ao falecido, persuadindo-o a abandonar os apegos e continuar sua jornada.

Os ritos são também para os vivos, pois permitem que a família se despeça de uma forma respeitável e digna, que expresse sua dor, perda e outras emoções que naturalmente vêm à tona neste momento crítico. O significado mais profundo dos ritos funerários se constitui em fazer a conexão dos mundos sutis interiores (svarga ou pitri-loka) com o mundo físico exterior (bhu-loka), e o reconhecimento de que a família não consiste apenas das gerações vivas, mas também abrange os ancestrais.

Há almas que encarnam sequencialmente na mesma família. O neto pode ser a reencarnação da alma do avô. Dessa forma, o karma e o dharma coletivo são inteiramente resolvidos. Quem está no mundo sutil interior ajuda os parentes que estão no mundo manifesto. Depois, quando retornam ao mundo exterior, eles se esforçam para avançar espiritualmente, pois esse progresso só é possível em uma encarnação física. A cerimônia ritual de união do falecido com seus antepassados e a veneração anual dos antepassados mantêm aberta a comunicação sutil que possibilita prosperidade e longevidade para a família.

Os ritos fúnebres hindus são realizados com os propósitos de propiciar à alma migração segura e sobrevivência agradável no outro mundo, além de proteger os membros familiares de contaminações energéticas decorrentes da morte do parente. Segundo as crenças hindus, quando morre alguém da família, independente de ela estar perto ou longe, seus parentes ficam poluídos pelo mero processo de sua morte. Essa contaminação continua até que a alma tenha completado a sua jornada para o outro mundo e todos tenham se purificado pelos rituais. Até mesmo quem viu o cadáver ou entrou no local onde ele estava fica, alguma forma, contaminado.

Quando a pessoa morre, seu corpo, depois de receber o último banho, é levado para o crematório por seus amigos e parentes, ao som da entoação dos nomes de Deus. O corpo é cremado geralmente no mesmo dia, senão um ou dois dias depois. Na pira funerária, que geralmente é acesa pelo filho mais velho, coloca-se o corpo com os pés em direção ao sul, que é a direção de Yama, o deus da morte.

De três a dez dias depois da cremação, as cinzas são coletadas e guardadas em urnas, para serem espalhadas em vários locais. São misturadas com terra, água e ar, para simbolizar o retorno do corpo aos elementos.

As Cerimônias de Sraddha

Na longa lista dos sacramentos (samskara) do hinduísmo, há determinados ritos que devem ser executados para aqueles que já partiram do mundo físico. Eles recebem o nome genérico de sraddha e são executados pela família do falecido, logo depois do funeral. Consistem de uma série de oferendas cerimoniais em que preparações de alimentos e libações de água são dedicadas aos manes, pais ou ancestrais já falecidos.

Isso é algo natural para os hindus, pois, para eles, nunca houve uma barreira espessa entre os mundos visível e invisível, entre os ”vivos” e os “mortos”. O contato entre essas duas dimensões sempre caracterizou essa tradição religiosa, pois consideram-se os deuses (devas) e os manes (pitris) tão reais como os humanos.

Nas cerimônias iniciais de sraddha, chamadas de ekoddishta sraddha ou preta-kriya, os filhos do falecido cantam mantras e oferecem preparações à alma que partiu para fornecer-lhes nutrição. São tortas de arroz, conhecidas como pindas, ou outros ingredientes, como leite, coalhada etc., que, oferecidos como oblação nos sacrifícios, adquirem uma forma sutil chamada apurva (“sem precedente”) e se prende ao sacrificador. Os jivas, envolvidos pela água suprida pelos ingredientes oferecidos em oblação nos sacrifícios e fortalecidos energeticamente pelos mantras, desenvolvem um corpo etéreo adequado que permita sua sobrevivência a caminho do mundo dos ancestrais. Essas oferendas devem ser realizadas durante dez dias. Cada dia equivale a um mês do período normal de gestação do embrião humano no ventre.

Quem executa sacrifícios satisfaz os deuses no paraíso e desfruta com eles. Tornam-se associados úteis dos deuses e contribuem para o desfrute deles, por meio de sua presença e serviço naquele mundo. Eles desfrutam em Chandraloka e, com o fim do estoque de seu mérito, retornam à Terra.

Muitas vezes, quando o falecido não teve morte natural e consciente, ele, na condição de preta, pode atormentar os membros de sua família. Então, as oferendas da cerimônia de sraddha podem tranquilizar a alma. Tais oferendas destinam-se a garantir a redenção da alma do falecido da condição de fantasma, que é o corpo de preta, e ajudá-lo a renascer, de acordo com seu karma passado acumulado. O Garuda Purana (2.13.1-23) explica como a alma do falecido pode ficar imobilizada por muito tempo na condição de preta, sem corpo e sentidos físicos. Não pode nascer para desfrutar de seu karma. Então, nessa condição de preta, ela vaga por todos os lugares, sofre fome e sede, até que os ritos funerários sejam executados.

Também se explica que, depois da morte, a alma do falecido adquire o corpo etéreo (ativahika sharira) de preta (Garuda Purana, 2.10.75-77). E que ela deixa esse corpo e adquire um corpo pinda-deha, feito de pindas (Garuda Purana 2.10.82, 2.15.37-38 e 2.15.66-67), como resultado das oferendas de pinda (tortas ou bolos de arroz), feitas na cerimônia de ekoddishta sraddha, durante os primeiros dez dias após a morte.

Entretanto, quando o corpo pinda-deha também se dissolve, como resultado dos ekoddishtta sraddha executados mensalmente, durante um ano, a alma está livre para deixar a dimensão intermediária e entrar no mundo dos antepassados. Nessa ocasião, realiza-se a cerimônia de sraddha conhecida como sapindi-karana, que facilita a entrada da alma no mundo dos ancestrais (pitri-loka) e sua permanência lá a partir de então.

Ficou bem claro que a não execução dos sraddhas faz com que haja impedimento no cumprimento da lei do karma. Cria-se impedimento no karma-vipaka, ou fruição do karma acumulado.

Considerações Finais

Sentir medo em face da experiência inevitável da morte é consequência da ignorância da verdadeira natureza da alma espiritual, das possibilidades de ela viver em diferentes dimensões e o próprio processo transformador dessa experiência. Punar-janma, o renascimento que liga uma vida a outra, reduz qualquer morte particular a um mero incidente dentro de uma série indefinida de incidentes.

Então, o que teria valor para o jivatma eterno não seria seu corpo material temporário e as parafernálias ligadas a ele, como família, bens materiais e posição social, mas, sim, a própria essência de eternidade, consciência e bem-aventurança. Assim como quem consegue algo superior, ele não tem dificuldade alguma de abandonar as coisas inferiores. Da mesma forma, quem está situado em autoconhecimento, na plataforma espiritual, consegue facilmente situar-se além dos prazeres materiais temporários. Na plataforma de autorrealização, o místico também sente prazer (ramante), mas seu prazer é infinito (anante). Isso é explicado no Padma Puranaramante yogino ’nantesatyananda-cid-atmani: “A felicidade dos místicos é ilimitada e real, pois vem da Verdade Absoluta”.

Porque na plataforma da autorrealização há o reconhecimento da existência continuada do ser (sat), da consciência ou conhecimento ilimitados (cit) e da satisfação estética infinita (ananda), a morte do corpo e a perda dos prazeres dos sentidos temporários não representam perda. O que ocorre é manifestação de um ganho maior. Portanto, não há motivo para medo e ansiedade. Morrer é algo tão natural e normal que jamais se considera “o morto” como tal. Ele apenas foi para outro lugar, para outra dimensão – mudou de residência.

Loka-sakshi Dasa, natural de Santa Cruz do Rio Pardo, SP, é discípulo direto de A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada. É versado em sânscrito e possui doutorado em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É conhecido por sua grande erudição e também por contribuir ativamente na difusão da sabedoria védica por todo o Brasil.

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Bibliografia

Baladeva. The Vedanta-Sutras of Badarayana, trad. Rai Bahadur Srisa Chandra Vasu. New Delhi: Oriental Books, 1979.
Goswami, Amit. A Física da Alma. São Paulo: Aleph, 2005.
Krishnan, Yuvraj. The Doctrine of Karma. Delhi: Motilal Banarsidass, 1997.
Maharshi, Ramana. The Collected Works of Ramana Maharshi. Ed. Arthur Osborne. New York: Samuel Weiser, 1997.
Prabhupada, A.C. Bhaktivedanta Swami. O Bhagavad-Gita Como Ele É. São Paulo: The Bhaktivedanta Book Trust, 1986.

Além do Nascimento e da Morte. São Paulo: The BhaktivedantaBook Trust, 1986.
Rangaramanuja, Sri. Kathopanisad. Tirupati: Tirumala Tirupati Devasthanams, 1984.
Sarvananda, Swami. Taittiriyopanisad. Madras: Ramakrishna Math, 1982.
Senart, Êmile. Brhadaranyaka Upanisad. Paris: Les Belles Lettres, 1967.
Swahananda, Swami. Chandogya Upanisad. Madras: Sri Ramakrishna Math, 1956.
Sutton, Nicholas. Religious Doctrines in the Mahabharata. Delhi: Motilal Banarsidass, 2000.

The Garuda Purana, A Board of Scholars, 3 Vol. Delhi: Motilal Banarsidass, 1978/79/80.

Fonte: Amigos de Krishna.


Espaço Ponto de Luz Rosana Rodrigues

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segunda-feira, 9 de maio de 2016

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Rosana Rodrigues Espaço Ponto de Luz
Uma alma livre que veio disfarçada de advogada,terapeuta floral bach,astróloga,pianista...



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quinta-feira, 5 de maio de 2016

Um amor “on the rocks”, por favor?

Um amor “on the rocks”, por favor?




Tem horas que é preciso ser pragmático. Deixar as ilusões românticas de lado. Dar um basta na fé. Se refugiar na raiva. Sentir o fracasso correndo nas veias. Parar com a balela de dar a outra face. Esquecer o perdão em uma ilha deserta. Suar profusamente de tanta desilusão acumulada. Ser humano. Simplesmente.
É isso mesmo. Não se trata de um texto sobre desistir de um amor por perceber que ele ficaria melhor sem a nossa companhia. Desejar sua felicidade em outros braços. Ser quase um iluminado. E os iluminados sentem ódio. Pode ter certeza. Nem que seja ódio de quem odeia. O texto é sobre o ócio depressivo. Aquele que nasce da mais profunda tristeza após o término de um relacionamento. Deitar na cama e ouvir a mesma melodia repetidas vezes. Dá para imaginar cenário mais perverso?

Em tempos de amor líquido é quase indecente desejar um amor “on the rocks”.
Precisamos mesmo criar novas expressões para justificar a falta de interesse no outro e quem sabe até pela humanidade em geral? Isso é a boa e velha depressão. Não é uma nova condição humana causada pela velocidade dos meios de comunicação atuais. Se fosse assim, muitas relações amorosas seriam automaticamente reestabelecidas quando houvesse a interrupção dos serviços de transmissão de dados.
A verdade que não se quer admitir é que seu parceiro não perceberia sua existência mesmo que vocês fossem para uma ilha deserta sem acesso a equipamentos eletrônicos de espécie alguma. Ele se entreteria com as estrelas, a lua, os sapos coaxantes, a areia da praia e até mesmo os mosquitos. Você continuaria no último lugar da lista de prioridades, bem depois do velho fax.
Por essas e outras é que colocar uma inocente pedra de gelo não vai fazer muita diferença. Embora muitos ainda insistam em utilizar esse recurso. De um lado o líquido (representando a impermanência das relações humanas) e de outro o sólido (representando a nossa resistência). Sabemos que a fusão será inevitável, mas mesmo assim colocamos a pedra de gelo no copo com água. Ela nos dá a ilusão temporária de que há algo diferente na bebida.
Para alguns fica bem melhor. Para outros perde o sabor. O resultado final é sempre o mesmo.

Então, o que fazer? DESISTIR! Sair pela porta da frente correndo e só parar quando estiver em território seguro. Quem nadou nas águas salgadas do mar morto sabe que é difícil submergir. Corre-se o risco de ficar eternamente na superfície. Melhor navegar para outros mares. De preferência bem distantes. Tirar a poeira de sua bússola interna e partir. Ser novamente um descobridor.
As fases de um amor podem ser tão vertiginosas como as dos estados físicos da água.

As mudanças bruscas são inevitáveis. Não somos as mesmas pessoas de ontem. Estamos em constante transformação. Se fossemos adaptar a lição do poeta Vinicius de Moraes, seria algo assim: que não seja permanente, posto que é líquido. Mas que seja sólido enquanto dure. Fonte: Adriana Abraham.
amor

ESPAÇO PONTO DE LUZ ROSANA RODRIGUES
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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Os três níveis de consciência

            Os três níveis de consciência



Diagrama do Tai-Chi chinês, representando a integração das polaridades
Yin/Yang.Créditos: facebook.com/vozesdobrasilmpbOficial/


     Os dois primeiros círculos apontam para um primitivo estágio
 de consciênciaonde a realidade está dividida em simples opostos: o lado do
 bem e o lado do mal. 
Não existe nenhum movimento dos pontos, indicando que o indivíduo tem uma 
estrutura praticamente estática, inerte, empedrada. Nessa fase, a percepção
 da realidade só comporta dualidades - "ou estão do meu lado ou são meus 
inimigos", "se isso não é mau, é bom", "gosto do mocinho e odeio o bandido", etc. 
A personalidade é inflexível e as pessoas desse nível, difíceis de lidar. Estão 
identificadas com uma parte ou com a outra. "Sou assim!", e ponto final. Não há 
consideração pelo ponto de vista do outro. Dependendo do lado, são 
consideradas superficialmente bons cidadãos ou malfeitores pela sociedade.

     O par de desenhos seguinte retrata um nível intermediário de consciência,
 em que há a percepção de que, dependendo da perspectiva, algo considerado 
em geral mal, possui também aspectos bons. Ou que nada é puramente prejudicial, 
nem tão somente virtuoso. Aqui existe movimento nas duas "gotas", que aparentam 
um girino, isto é, um ser vivo, com dinamismo orgânico. A perspectiva estática
 dualista é lançada por terra. O indivíduo percebe que é uma mistura de defeitos e 
virtudes, e que é incapaz de determinar, em um certo momento, em dada condição,
 qual parte irá prevalecer. Existe mais flexibilidade com relação ao que se pode
 ser, de acordo com o que a situação exigir. Admite-se amar também os defeitos
 alheios. Mas a atividade dos "pingos" ainda é separada. Ora percebe-se o mal 
em si, ora no outro; se se nota que tem um lado positivo, não é possível a mesma
 observação, no mesmo instante, no outro. Estabelece-se o conflito: para que
 eu seja considerado bom, o outro tem que ser mal. Por isso, em uma discussão é 
quase impossível se sair da defensiva - ou me considero justo e o outro culpado 
ou vice-versa, sentindo-me confortável ou não.

   




















O desenho unificado configura um dinamismo e a ausência de conteúdos
 estagnados e separados. É um estágio avançado de consciência porque
 engloba todos os outros e vai além. Se existe conflito, este se configura
apenas com o(s) outro(s), que não possui(em) a perspectiva total. Vivencia-se
 a dualidade em si e no outro, simultânea e ativamente. Existe aqui a
 flexibilidade e a inflexibilidade, assim como vários outros pares de
opostos, conjugados de maneira temperada, de acordo com a vontade do
sujeito. Mas "vontade" aqui é mais que um mero anseio do Eu, pois engloba
 que o indivíduo faça também aquilo que não é ou seria sua escolha no
momento devido à compreensão de que também percebe a verdade oposta
 dentro de si.

     É preciso pontuar que nenhum desses estágios ocorre de forma estanque
 no ser humano. Do mesmo modo que a última figura contém todas as outras,
as fases anteriores ocorrem ainda de maneira mais ou menos fortuita e
momentânea no terceiro nível, prevalecendo aquele que tiver sido mais desenvolvido.
 Por vezes, um sujeito no primeiro estágio de consciência pode ter um insight
instantâneo do que seja viver no terceiro, e isso pode ser a chave para iniciar
 uma grande mudança de vida. Do mesmo modo, um indivíduo relativamente
 realizado pode de repente "surtar", caindo rapidamente no primeiro ou segundo
 nível, para seu sofrimento.

     Se a figura completa do Tai-Chi for imaginada girando, nota-se que os dois
 pequenos anéis no interior do Yin e do Yang formarão cada qual um círculo e
se manifestará um centro que se aplicará aos dois. Na figura sem movimento
 esse centro não se revela, apenas na dinâmica da vida, nesta em que há
continuamente a alternância de estados, humores e situações. Assim é a
totalidade humana, gerenciada a partir do centro imóvel e imutável, que se
 expressa nas mudanças de estados psíquicos. A psicologia chama a esse centro
 de Si-mesmo.





     Para a filosofia chinesa as mudanças prevalecem sobre as oposições.
 Não existe juízo de valor - um lado ser superior ao outro. Yin não é mal, 
nem Yang o bem. E assim é se se pensar na interação e alternância dessas
 oposições como vida. O primeiro "evoca a ideia de tempo frio e encoberto,
 e aplica-se ao que é interior, enquanto o termo Yang sugere a ideia de
 exposição ao Sol e de calor. Em outros termos, Yang e Yin indicam aspectos
 concretos e antitéticos do tempo. [...] O mundo representa, pois, 'uma totalidade
 de ordem cíclica, constituída pela conjugação de duas manifestações
 alternativas e complementares'" (ELIADE, 2011, p. 26). 

     Em um pequeno tratado está escrito: "Um (aspecto) yin, um (aspecto) yang,
 eis aí o tao". Ou seja, o tao, traduzido aqui como "vida", comporta dois
aspectos opostos que se alternam. Esse vocábulo quer dizer também "caminho",
evocando a imagem de uma trilha a seguir, a ideia de direção de conduta, de regra
 moral, e, por fim, a arte de pôr em comunicação o Céu e a Terra (Ibid. p. 27).
     Portanto, não se deve abrir mão da vida em favor de estados estáticos de
 prazer, nem de dor, no caso dos masoquistas, por mais difícil que isso possa
 parecer. Isso não é vida, mas morte em vida. Vida é movimento, é alternância,
 é mutação. O sofrimento e as doenças mentais advém de querermos
 impor a permanência de estados inconstantes, enquanto que permanente só
pode ser nossa contemplação de sua passagem na nossa caminhada. E é
 claro que em grande parte não temos consciência dessa autoimposição, pois
 a incorporamos culturalmente. Se nos acostumarmos a tomar posição no
centro, poderemos contemplar a totalidade dos processos vitais sem angústia.
 Neste caso alcança-se o verdadeiro estado de felicidade, pois nos colocamos
 no rumo do sentido, sob a direção do centro da personalidade.
(NOTA: A leitura que faço do Tai-Chi é simbólica e aplica-se à psique
 humana, não se vinculando a nenhuma pesquisa científica.)

REFERÊNCIAS
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: de Gautama Buda
 ao triunfo do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. vol. II.
Fonte: Ponto de vista Lógico


Espaço Ponto de Luz Rosana Rodrigues
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terça-feira, 26 de abril de 2016

David Icke - VACINA H1N1 DESTRÓI sua SAÚDE - Legendado Português Br

A Cultura do Estresse: é Preciso Demorar-se...

A Cultura do Estresse: é Preciso Demorar-se

É preciso contra-atacar a superficialidade da cultura do estresse. Essa moderna mediocridade moral de auto-satisfação. É preciso aprender a demorar-se na vida.
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O filósofo e escritor francês renascentista Michel de Montaigne (1533-1592), num de seus estudos – reunidos em “Michel de Montaigne: The Complete Essays”, disse que o tempo é o único governante permanente e absoluto no universo. Um governante escrupulosamente justo, o qual trata a todos de forma absolutamente igual, sem fazer distinção de nenhuma espécie e, por isso, é o grande nivelador perante o qual todos são iguais. Todos têm a mesma quantidade de tempo e a mesma liberdade de escolher o que fazer com ele.

Pensando nestas palavras, vem-me à mente a gravidade com a qual tratamos este tema. Entristece-me perceber no dia-a-dia tantas pessoas a negligenciarem o próprio tempo. Afinal, somos uma sociedade doente que perdeu a capacidade de experenciar, de calar a boca e contemplar, de perceber, de aproveitar, de ouvir, de olhar demoradamente, de demorar-se. Mas, hoje o tempo é só mais uma filosofia que não leva a lugar algum. Vivemos a “cultura do estresse”, pregada e cultuada por muitos. Ambicionada e superestimada por outros tantos. Essa cultura do “não temos tempo para nada”, esses pobres workaholics que vivem como se carregassem uma medalha no peito, orgulhosos por nunca terem tempo. E vivem o estresse como a um particular santuário, como se eles fossem um exemplo a seguir, de vidas corridas e coisas a serem feitas, de coisas acumuladas. As tarefas, as reuniões, os prazos. Este triste tipo de gente que não sabe que o sucesso não é a falta de tempo, é ao contrário. Pessoas que fazem do estresse parte integral da sua existência, da sua personalidade. E o pior é que acham bonito, que as coisas são assim mesmo, goste quem gostar, doa a quem doer e a vida segue…na correria, claro.
É preciso que se esteja sempre às pressas se quiser tirar o melhor desta vida. É preciso viver esgotado. Obter resultados. Porque é assim que se faz. É preciso consumir, é preciso negociar, é preciso ter. Nunca ser, jamais ser, a vida não tem tempo para esse tipo de drama. O sucesso não perde tempo com o pôr-do-sol.
O escritor e pensador David Brooks, do The New York Times, escreveu em seu livro “The Road to Character”, que “vivemos numa sociedade que nos incentiva a pensar em como ter uma grande carreira, mas deixa muitos de nós inarticulado sobre como cultivar a vida interior”. Ele não poderia ser mais acertado. A pressão na qual vivemos para se ter “sucesso” e “admiração” nos transforma num feroz coletivo competidor, boicotando a qualidade de vida, fazendo o caminho contrário a isto. Nas ideias do autor, todo o estresse no qual as pessoas estão acostumadas, e com o qual aceitam viver, provoca um ruído, fazendo com que seja mais difícil de ouvir os sons que emanam das profundezas do nosso ser, não dando espaço para a criatividade e espiritualidade. Ou seja, o estresse, a correria, o trabalho demasiado só faz desconstruir a própria identidade e a busca por uma vida plena. O autor afirma: é preciso se autoconfrontar, ao invés de abraçar a cultura do estresse. O livro promove uma reação “elegante” para um contra-ataque à superficialidade da cultura do estresse, o que o autor chama de “mediocridade moral de auto-satisfação”, o que define a vida moderna.
E segue-se pelo almoço de quinze minutos, pelas horas em que não se passa com os filhos, com a família. Segue-se pelas noites mal dormidas, pelos jantares desmarcados, pelas conversas perdidas, pelos aniversários esquecidos, pelas cervejas que esquentaram. Segue-se pelas luas que não foram contempladas, pela natureza ignorada, pelas férias adiadas. Pela falta de diálogos, pelos celulares ligados, pelos passos apressados. E essa é a vida que a sociedade conhece, vive e aceita. E essa é a vida que muitos adoram viver.
E a vida, que é bonita, encontra neste tipo de gente a sua mais trágica definição: “a vida é curta”. A vida é curta para quem se acha mais importante que ela. A vida é curta para quem entrega-se à tirania do trabalho sem medida, da ambição desenfreada, da armadilha da palavra “sucesso”. Que me perdoe Benjamin Franklin e sua célebre frase “time is money”. Não é. Tempo é muito mais rico que o dinheiro, muito mais abrangente, muito mais generoso, infinitamente mais urgente. Não, a vida não é curta, ela é suficiente.
Mas é preciso que saibamos viver. E saber viver é saber quando parar de correr. Nós seríamos muito mais plenos se fôssemos mais calmos em relação às coisas, às pessoas, às circunstâncias. Se soubéssemos o que é moderação, se tivéssemos a capacidade de combinar todas as necessidades de uma forma igual e integrada em nós mesmos. Mas não, que bela merda de viver a vida, entre uma reunião e outra, entre uma ligação e outra, entre uma ambição e outra.
Quem vive correndo não fecha os olhos nem abre os braços, nem se joga à vulnerabilidade do espontâneo, nem se perde na lógica. Há de se perder a agenda, as previsões. Ser desprevenido. E, ainda assim, ser satisfeito. Ter mais a cabeça nas nuvens do que os pés no chão. Jogar o sapato fora, andar descalço. Desligar o celular. Rir, chorar, viajar, chamar para dançar. Comprar flores. Cozinhar. Aprender que o sucesso se dá pela subtração e não pela soma, saber que menos é mais. Aprender a ser generoso consigo mesmo. Ser generoso com o próprio tempo. Amar-se assim. Demorar-se, demorar-se, demorar-se!
Fonte: texto por Sophia Rocha para OBVIOUS - foto por Petra Österreich para Pixabay

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