Por
que Desejamos a Felicidade?
Chandramukha
Swami
“Ter ou não ter” não é a
questão.
A escola hedonista de
Epicuro defende que a felicidade consiste basicamente na obtenção de posses, na
aquisição plena dos bens externos. “Quanto mais possuir”, afirmava o filósofo
grego que viveu três séculos antes de Cristo, “mais o indivíduo poderá gozar e,
assim, mais irá experimentar a felicidade”. Um século antes de Epicuro, o também
filósofo grego Diógenes propagou a doutrina que ficou conhecida como “Cínica”,
na qual ele ensina que a felicidade pode ser obtida unicamente através da
vacuidade, da renúncia dos bens externos. Ele defendia que, através da
diminuição voluntária das posses e da eliminação do desejo de possuí-las, o
indivíduo se torna mais feliz. Segundo seu ponto de vista, duas razões afastam o
indivíduo da felicidade: o desejo de possuir o que não pode possuir e o medo de
perder as posses conquistadas. “O caminho da felicidade consiste em renunciar
espontaneamente as posses dos bens externos e o desejo de possuí-las”, pregou
Diógenes.
É claro que os
pensamentos de ambos os filósofos gregos citados são admiráveis e há importantes
elementos de verdade em suas teses, mas, segundo Sri Chaitanya, o “apóstolo do
amor a Deus” que viveu na Índia há pouco mais de 500 anos, ambos falharam num
ponto extremamente central: a verdadeira felicidade não vem a reboque da
abundância das posses de bens externos e nem está atrelada ao desprendimento
deles, mas advém da compreensão de que tudo pode ser usado, de forma pontual e
moderada, a serviço do autoconhecimento e da autorrealização, e nunca de outra
forma.
Sri Chaitanya, o
“apóstolo do amor a Deus”.
Segundo sua filosofia, a
qual foi batizada como “simultaneamente igual e diferente”, a felicidade
verdadeira não está sujeita às ocorrências externas, mas depende unicamente das
circunstâncias internas. Sua conclusão é que tanto uma existência repleta de
facilidades materiais quanto uma vida de abnegação voluntária não podem garantir
felicidade a ninguém. De fato, alcança a felicidade verdadeira e a conserva
internamente o indivíduo que desenvolve potência e vitalidade espiritual, as
quais são frutos maduros da brandura do coração e da pureza da consciência. Uma
vez que “ter ou não ter posses materiais” são fatores que escapam constantemente
do controle de qualquer um, definitivamente a felicidade verdadeira e perdurável
não tem nada a ver com alguns acontecimentos objetivos externos, mas, sim,
depende de em que se baseiam nossas atitudes internas, subjetivas e
transcendentais.
A Solução Está em Saber
Possuir
Sri Chaitanya aponta
duas ameaças para aqueles que são candidatos a alcançar a felicidade: fazer uso
dos bens materiais com o propósito precípuo de gozar os sentidos, e renunciar a
possibilidade de usá-los em um contexto espiritual. Além de ir na contramão da
felicidade, ambas são fontes de ansiedade e condicionamento. Segundo ele, a
solução está em saber possuir. E quem, entre os homens, sabe possuir? Aquele
que, além de conhecer a arte de identificar os bens realmente utilizáveis a
serviço do autoconhecimento, emprega-os de forma pontual como ferramentas
valiosas de autolibertação. Por outro lado, aquele que se vale dos bens externos
para o gozo dos sentidos, acaba se tornando escravo deles. Portanto, a diferença
entre possuir os bens ou ser possuído por eles é brutal. Sabe possuir somente
aquele que consegue ter sem que o seu “ter” o tenha.
Aquele que se vale dos
bens externos para o gozo dos sentidos, acaba se tornando escravo
deles.
É evidente que, num
sentido real e mais profundo, ninguém é capaz de possuir algum objeto material.
Ainda assim, não há mal algum em alguém “possuí-lo” de forma equilibrada. E, o
que queremos dizer com “posse equilibrada”? É algo subjetivo, que depende da
qualidade da consciência daquele que “possui”, não sendo algo objetivo, como a
quantidade de posses. Não há como negar que lidar de forma apropriada e moderada
com as posses materiais coloca o indivíduo numa condição de equilíbrio. Ora, se
o apego em excesso (conforme apregoava Epicuro) e a aversão em demasia (de
acordo com as ideias de Diógenes) desviam o indivíduo da felicidade permanente,
uma relação equilibrada com as parafernálias materiais é condição sine qua
non para se alcançar o objetivo com eficiência.
Onde Colocar o
Coração
Podemos avaliar o grau
do nosso egoísmo por observar a gangorra de altos e baixos dos nossos
sentimentos. Por isso, um dos ensinamentos fundamentais da Bhagavad-gita
é que devemos sempre colocar o nosso coração na ação devocional e nunca na busca
por recompensas, sejam elas quais forem. De fato, quando eliminamos os
propósitos egoístas de nossas vidas e passamos a agir sem buscar recompensas,
somos capazes de executar qualquer trabalho que seja necessário sem ficarmos
acorrentados por ele. É esta liberdade do egoísmo que nos conduz efetivamente à
equanimidade mental. Em outras palavras, o quanto nos tornamos eufóricos com as
experiências de “sucesso” e nos deprimimos com as experiências de “fracasso”,
serve como evidência de quão forte é o nosso egoísmo.
Felicidade e
Simplicidade
Mesmo que seja o tema
central da humanidade e a meta suprema da existência humana, a verdadeira
felicidade pode ser obtida através de coisas pequenas e simples, já que a
natureza verdadeira da felicidade é puramente espiritual e só depende de pureza
de consciência e de nada mais. De fato, ao trabalhar no cultivo dos princípios
éticos e das virtudes internas, o indivíduo amplia sua consciência e
espiritualiza sua visão: “Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão
a Deus”.
Para aquele que
contempla a vida sob uma ótica espiritual, tudo se torna uma valiosa fonte de
felicidade.
Na verdade, para aquele
que contempla a vida sob uma ótica espiritual, qualquer coisa, evento,
ocorrência, episódio – por mais simples e pequenos que possam parecer – se
tornam majestosos e nobres e se convertem em valiosas fontes de felicidade. Em
outras palavras, a felicidade é uma questão de pureza de consciência, pureza
esta que pode ser conquistada gradualmente pelo indivíduo que se volta de todo o
coração para um código incondicional de absoluta ética. De fato, quando se dá
conta do enorme balaústre de tranquilidade que, agindo assim, irá construir
dentro de si mesmo, o indivíduo não mais hesita, pois, nesse momento, não lhe
resta nenhuma dúvida ou espaço para qualquer tipo de arrependimento, mágoa ou
infelicidade.
A Felicidade é a Meta, o
Resto (Quando Muito) é o Meio
Sem dúvida, ninguém é
igual a ninguém. No entanto, embora cada um de nós tenha suas particularidades e
peculiaridades, concordamos num único quesito: sem a menor exceção, queremos
todos ser felizes! Este é o clamor suplicante da nossa alma, nossa aspiração
oculta, nosso anseio latente e insuportável. Apesar das diferentes opiniões
sobre como alcançá-la, ninguém duvida de que tão somente a felicidade é, e
sempre será, a meta final da existência! Somente ela é o fim em si mesmo, a
glória última, a coroação suprema da existência. E por que afirmamos que a
felicidade é a meta final?
Ora, de que nos serviria
alcançar a riqueza e ter acesso pleno aos prazeres da vida, caso isso não nos
proporcionasse felicidade verdadeira e duradora? De que nos adiantaria uma vida
de simplicidade, renúncia e vacuidade, se isso não nos servisse de atalho à
felicidade verdadeira e duradora? Que valor teria se conquistássemos um mundo de
poder e fama, se isso não nos desse acesso à felicidade verdadeira e duradora?
Ou seja, a riqueza, o poder, a fama e até mesmo a renúncia, quando muito, são o
meio para a felicidade e nunca a meta final. Quem buscaria a felicidade para
outra coisa além da própria felicidade? E, como a felicidade é a única que se
basta, nos parece correto afirmar que a felicidade é a meta suprema e última da
existência. De modo semelhante, a busca por esta felicidade é o elemento que
motiva a existência dos mais diversos tipos de pessoas. É essa busca que atua
como combustível para uma pessoa se empenhar em obter riquezas, que dá força
necessária para outra lutar incansavelmente pelo poder, que impulsiona outra a
fazer de tudo para conquistar a fama. Essa mesma busca pela felicidade também
motiva certas pessoas ao recolhimento, à privação dos prazeres da vida, a
levarem vidas de contemplação e a buscarem o divino em seu próprio interior. E
embora sejam apostas diferentes, todos acreditam que, através do caminho
escolhido, irão entrar em contato com a tão sonhada felicidade e, assim,
preencherão plenamente os vazios do coração.
O Dharma da
Alma
Sabemos que, desde
tempos imemoriais, o sol evapora as águas do mar e as armazena em nuvens para,
em seguida, distribuí-las na forma de chuvas. Pelo desejo da Providência, essas
águas caem nas superfícies e conseguem se infiltrar pelos espaços vazios entre
as rochas, formando, assim, um lençol freático. Com o tempo, quando o lençol
freático fica suficientemente cheio, cria-se um olho-d’água, o qual se
transforma numa nascente. A nascente, então, dá origem a um novo rio, que, por
sua vez, terá que vencer vários obstáculos até se reencontrar com o mar.
Baseados nisso, podemos afirmar que o dharma do rio é buscar o oceano. E
não importa se barreiras, obstáculos ou dificuldades irão surgir em sua frente.
Nada o fará desistir, mesmo que tenha que mudar o curso de suas águas, mas ele
continua determinando a buscar o oceano. E somente quando conseguir alcançar seu
objetivo de se encontrar e se vincular ao oceano, quando o rio passará a fazer
parte de uma existência incomensurável, todos os seus problemas se
acabarão.
A existência humana é
como a de um rio. Em outras palavras, da mesma forma que o rio se mantém
absolutamente determinado em buscar o oceano – já que foi de lá que ele veio –,
quer saiba, quer não, o ser humano está sempre caminhando em direção a Deus, seu
criador e a fonte e o manancial da sua verdadeira e duradora felicidade. Buscar
essa fonte de felicidade é, portanto, o dharma da nossa existência. Fomos
criados para isso, é nossa inseparável aspiração, o significado de nossa
existência, independentemente das barreiras, obstáculos ou dificuldades que
teremos que enfrentar. A felicidade é nossa busca única e incontrolável, pois
possuímos, como ressalta São Tomás de Aquino, a libido felicitatis, “a
pulsão de ser felizes”. Essa pulsão é intrínseca ao próprio Eu. Portanto, nada
poderá nos fazer abdicar de correr atrás da felicidade, assim como nada fará com
que o rio desista de correr na direção do oceano.
Pode ser que tenhamos
perdido o desejo de sermos ricos, de sermos famosos, de sermos poderosos, mas
nunca desistiremos de ser felizes. E por que desejamos tanto a felicidade?
Porque “desejar” e “ser feliz” são características naturais do nosso Eu, da
nossa alma. Por isso, desejar a felicidade é inevitável. É claro que há
diferentes conceitos de felicidade, diferentes formas de imaginá-la, mas a busca
por ela existe em todos. E dizer que buscamos por felicidade não é diferente de
dizer que sentimos sua falta, temos saudades dela. E essa saudade da felicidade
é extremamente intrigante, pois é uma forma de revelar que todos nós já tivemos
a experiência real de felicidade em algum momento, pois não seria possível
sentirmos falta de algo que nunca tivemos contato ou acesso.
Ora, temos saudades de
pessoas com as quais convivemos, sentimos falta de experiências que já tivemos,
desejamos saborear alimentos que já provamos, queremos repetir situações
prazerosas que já passamos. Tudo isso é completamente compreensível. No entanto,
não podemos sentir falta de algo que não conhecemos, que não temos a menor ideia
do que seja, algo a que nunca tivemos acesso. Por isso, como, na presença da sua
bem-amada, alguém poderia sentir saudade dela? Como, de estômago cheio, alguém
poderia sentir fome? De fato, saudade só existe na distância, assim como a fome
só surge quando o corpo é privado de alimento. Saudade e fome são desejos,
testemunhos da ausência de algo. Desejamos quando estamos privados. Por isso,
temos fome e sentimos saudade. Portanto, a alma deseja felicidade porque, por
ora, está privada da felicidade que lhe é de direito.
De forma semelhante,
queremos amar e ser amados. Isso se aplica a todos. E mesmo que muitas
tentativas de amar e ser amado sejam frustrantes e tragam experiências
dolorosas, ninguém desiste. O problema é que não temos uma compreensão clara do
significado do amor. Todavia, mesmo que cada um entenda o amor do seu próprio
jeito, que imagine sua própria forma de amar, a busca pelo amor sempre persiste,
não sendo possível interrompê-la. Essa busca, assim como a busca pela
felicidade, nos leva a crer que já amamos verdadeiramente em algum momento,
assim como já fomos verdadeiramente amados. Caso contrário, se nunca tivéssemos
tido experiência real do amor, como sentiríamos sua falta?
Portanto, felicidade e
amor estão interligados e são desejos naturais e inevitáveis. E, como foi dito,
sentimos a falta deles porque, em algum momento da nossa existência, já tivemos
acesso a eles. Como a natureza original da alma é a plenitude, a ideia de
privar-se de alguma coisa é inaceitável. Por isso, durante sua vida terrena e
condicionada, todo indivíduo está sempre sentindo falta de algo. Para a alma, o
que lhe é oferecido na plataforma material não é suficiente. Por isso, ela não
consegue parar de desejar. O problema é que, revestida de um corpo material, ela
não se reconhece e, confusa, perde sua capacidade de desejar com perfeição.
Pobre dela que acaba inventando algo para desejar na esperança vã de que este
algo irá lhe proporcionar a sensação de plenitude que, em algum momento de sua
existência, já experimentou.
Fonte: Amigos de Krishna
ESPAÇO PONTO DE LUZ ROSANA RODRIGUES