HINDUÍSMO OU HINDUÍSMOS? - UMA INTRODUÇÃO*
por Lúcio Valera (Lokasākṣī Dāsa)
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Radha Krishna - Deidades da África do Sul |
ekaṁ sad viprā bahudhā vadanti
“Um é o real, mas os sábios falam sobre ele de muitas formas” (Ṛg Veda, 1.164.46).
Podemos definir o Hinduísmo não como a religião da Índia, mas sim como o conglomerado de tradições religiosas que se identificam com as diferentes matrizes de escrituras védicas[1]. Isso incluiria a maioria da população da Índia e do Nepal, bem como os membros de comunidades espalhadas pelo mundo, que se identificam como ‘hindus’ ou com outras denominações relacionadas, como ‘vaiṣṇavas’, ‘śaivas’, ‘smartas’, etc.
Mas, há religiões autóctones da Índia – como o Budismo, Jainismo e o Siquísmo –, ou que ali se estabeleceram – como os Parses (Zoroastrismo) – que não podem ser classificadas dentro do conceito amplo do Hinduísmo, por não seguirem ou, de alguma forma, contestarem a autoridade das escrituras védicas (Resnick, 2009, p. 321).
Contudo, as denominações ‘Hinduísmo’ e ‘hindu’ não são nativas da Índia, elas foram inicialmente utilizadas por estrangeiros. Gavin Flood explica que:
“O termo ‘hindu’ primeiramente foi usado como um termo geográfico persa que indicava as pessoas que viviam do outro lado do rio Indus (Sânscrito: sindhu). Em textos árabes, Al-hind é um termo usado para as pessoas da Índia contemporânea e ‘hindu’, ou ‘hindoo’, era utilizado nos fins do século XVIII pelos britânicos para indicar o povo do ‘Hindustão’, a área da Índia setentrional. Eventualmente ‘hindu’ tornou-se praticamente equivalente a um ‘indiano’ que não era muçulmano, sique, jaina ou cristão. O ‘-ismo’ foi acrescentado ao ‘hindu’, por volta de 1830, para indicar a cultura e religião dos brâmanes de alta casta em contraste com as outras religiões e o termo logo foi apropriado pelos próprios indianos no contexto de estabelecer uma identidade nacional em oposição ao colonialismo. Ainda que, desde o século XVI, o termo ‘hindu’ tenha sido utilizado, em textos hagiográficos sânscritos e bengalis, em contraste com ‘yavana’ ou muçulmano” (Flood, 2005, p. 6).
Algumas tradições ortodoxas bem como modernas do que nos é conhecido como Hinduísmo, independentemente de sua denominação, às vezes, preferem identificar Hinduísmo com Sanātana-Dharma (a religião ou dever eterno) ou Vaidika Dharma (a religião dos Vedas).
SANĀTANA DHARMA E A PLURALIDADE DAS TRADIÇÕES DO HINDUÍSMO
Gavin Flood questiona o fato de que quando falamos sobre o Hinduísmo estaríamos lidando com uma única religião, cuja essência se manifesta em formas diferentes. Ou seria o Hinduísmo uma diversidade de tradições distintas que partilham de certos traços comuns com nenhum traço único sendo partilhado por todas elas? Ou estaríamos lidando com uma realidade cultural fragmentada de crenças e práticas variadas, erroneamente classificadas como uma única religião? (Flood, 2005, p. 1).
Na realidade, constata-se que não há apenas um tipo de Hinduísmo, mas sim vários Hinduísmos. Para Angelika Malinar “o conceito ‘Hinduísmo’, como categoria teológica ou científico-religiosa não está assegurado, pois não se encontra presente nos textos clássicos e tradições considerados testemunhos dessa religião” (Malinar, 1995, p.16). Malinar também pondera sobre a dificuldade de se explicar e compreender o Hinduísmo, pois:
“Quando queremos falar da religião na Índia nos deparamos com tradições que são explicadas por uma conceituação filosófico-teológica diferente”. Para ela “a grande variedade de tradições religiosas e de sistemas teológicos torna difícil uma apresentação sistemática” (Malinar, 1995, p.16).
Quanto à questão da identidade das tradições hindus, Paul Hacker critica a pretensa ‘unidade do Hinduísmo’. Para ele, “[...] a unidade do Hinduísmo é um postulado moderno, um produto do Neo-Hinduísmo. Ela é ‘inspirada essencialmente por apologias e nacionalismos’ proclamadas pelos ‘líderes do Neo-Hinduísmo’ e adotada até certo grau fora da Índia. Na verdade, a unidade do Hinduísmo tradicional é só uma unidade geográfica; e o próprio Hinduísmo equivale basicamente a um grupo de religiões que coexistem na mesma região geográfica e exibem várias características em comum, mas com muito mais sinais de divisão e antagonismo” (Halbfass, 1995, p. 12).
Apesar do Neo-Hinduísmo[2] não ser um sistema de pensamento unificado, ele nos dá a ideia de que a verdadeira natureza do Hinduísmo seria o ‘universalismo’ ou o ‘ecletismo radical’[3]. O Hinduísmo tomado como um todo pode ser observado em “duas formas de pensar, a neo-hinduísta e a tradicionalista”. Paul Hacker esclarece ainda mais:
“Utilizei o termo ‘formas de pensar’. Na verdade, o Neo-Hinduísmo e o Hinduísmo tradicionalista não são sistemas precisos, mas sim duas atitudes mentais distintas. Pode até mesmo acontecer que uma mesma pessoa combine os elementos das duas formas de pensar.
O Hinduísmo tradicional assimila e absorve elementos externos de uma forma bem diferente do Neo-Hinduísmo. Diferentemente deste ele mantém uma continuidade viva com o passado. Mesmo no passado, grupos hindus já absorviam elementos do estrangeiro. Eles certamente mudaram a aparência da religião desses grupos. Mas ao mesmo tempo as maiorias de seus antigos valores se mantinham vivos como antes” (Hacker, 1995, p. 232).
Hacker afirma que o pensamento neo-hindu recebeu influência do Ocidente e que seus seguidores se caracterizam como tal pelo fato de “[...] sua formação intelectual ser principalmente ou predominantemente ocidental. É a cultura europeia, e em muitos casos até mesmo a religião cristã, que os levaram a adotar determinados valores religiosos, éticos, sociais e políticos. Mas, depois eles articularam esses valores como sendo parte da tradição hindu” (Hacker, 1995, p. 231).
Podemos identificar suas origens no Brahma Samaj de Ram Mohan Roy, o seu fortalecimento no Neo-vedānta de Vivekananda e a conquista de sua respeitabilidade em Radhakrisnam e em outros acadêmicos neo-hindus. Sua influência também pode ser encontrada em Gandhi, Rabindranath Tagore, Sri Aurobindo e outros.
Pode-se constatar que há uma distinção bem clara entre os Hinduísmos tradicionais e o Neo-Hinduísmo. Os primeiros não aceitam serem rotulados como Hinduísmo, mas sim a designação de sua própria tradição. Para eles não há ‘um Hinduísmo’, mas sim ‘vários Hinduísmos’. Portanto, teologicamente falando, eles seriam vaiṣṇavas, śaivas, śāktas ou smārtas, mas não ‘hindus’[4].
Os neo-hindus, contudo, enfatizam que a unidade filosófica e teológica do Sanātana Dharma só pode ser encontrada em um Hinduísmo unificado e não sectário (que na verdade seria o Neo-Hinduísmo). Eles aceitam se identificar com o Hinduísmo sem qualquer dificuldade. Segundo Hacker:
“O Neo-Hinduísmo de fato afirma ser o Hinduísmo. Mas é um Hinduísmo singular. Sua identidade substancial com o Hinduísmo antigo é questionável. Até mesmo compará-lo com as características gerais do renascimento europeu é questionável. Poderíamos dizer que como sinônimo para ‘neo-hindu’ utilizo às vezes a palavra ‘modernista’. Essa palavra também tem o sentido do prefixo ‘neo’”(Hacker, 1995, p. 230).
TRADIÇÕES VÉDICAS DOS NIGAMAS: ŚRUTIS E SMṚTIS
A palavra veda significa conhecimento e o Veda é considerado, pela tradição hindu, como não tendo origem, nem autor (apauruṣeya), ou como uma revelação de Deus (Flood, 1996, p. 35). Pedra fundamental da civilização indiana e a personificação das regras ou leis que regem todo o universo (ṛta), eles são relatos do que foi ‘visto’ pelos ṛṣis ou, os mais bem-dotados poetas, videntes e profetas da civilização.
Segundo Gavin Flood, “o termo veda é utilizado em dois sentidos. Ele é sinônimo de ‘revelação’ (śruti), que foi ‘ouvido’ pelos sábios, e então pode denotar todo o corpo de textos revelados, mas é também utilizado com um sentido restrito para se referir às camadas mais antigas de literatura védica” (Flood, 1996, p. 36).
Mas, como há outras categorias de escrituras reveladas entre os hindus, que existem paralelamente com a tradição védica arcaica dos śruti e suas literaturas complementares adotaremos a denominação de Nigamas[5] para a literatura védica e de Āgamas para essas outras revelações, aparentemente mais recentes, que são utilizadas também como autoridade nas tradições religiosas do Hinduísmo.
Smārtismo, juntamente como o Vaiṣṇavismo, Śaivismo e Śāktismo, constitui uma das quatro grandes divisões do Hinduísmo tradicional. Os termos Smārtismo e smārta (que indica os seus seguidores) vem da palavra smṛti (memória) que significa princípios de conduta e deveres evocados e derivados dos Śrutis ou textos do conhecimento revelado nos Vedas. Mas o éthos e a classificação do Smārtismo não podem se confinar apenas à comunidade dos brāhmaṇas smārtas,[6] com quem é frequentemente identificado.
Apesar de não haver nele nenhuma divisão formal, ou escolas oficialmente reconhecidas, podemos observar algumas particularidades distintivas que constatam a existência de diferentes enfoques no Smārtismo.
A razão dessa variedade se deve ao fato de os Vedas tratarem de uma gama extensa de conhecimentos, como o conhecimento sobre a ação ritual (karma), que permite ao indivíduo uma vivência melhor dentro do mundo material (karma-kāṇḍa); o conhecimento da reflexão filosófica, que permite a libertação da existência material (jñāna-kāṇḍa); e o conhecimento da meditação correta (upasana-kāṇḍa), que situa a pessoa em uma relação com a Divindade.
De uma forma geral, o Smartismo é seguido por aqueles que acreditam na autoridade dos Vedas bem como nas premissas básicas dos Dharma-śāstras, Purāṇas e Itihāsas. Podemos também constatar que somente os membros das três classes superiores se identificam com o Smartismo, considerando-o com sua tradição ou linhagem familiar (gotra). Essa tradição, apesar de ser minoria dentro do Hinduísmo, ainda é praticada na Índia dentro do contexto hereditário das famílias das castas superiores.
Quando a ortodoxia do Brāhmaṇismo Smārta foi impugnada pelas tradições heterodoxas, como o Budismo e o Jainismo, que contestavam a própria ideia de sacralidade e validade dos Vedas e dos sacrifícios e princípios védicos (Flood, 2003, p.5), os sacrifícios (yajñas) védicos começaram a perder sua importância.
Consequentemente, a degeneração das tradições védicas milenares acarretou o surgimento de cultos violentos e seitas imorais, algumas em nome de Śiva e Śakti, que se digladiavam em busca de supremacia uma sobre as outras. Foi no contexto desse período turbulento, no século IX d.C., que o grande filósofo Śaṅkara apareceu e reformou a tradição védica smārta.
Śaṅkara, para consolidar as diferentes tradições religiosas de origem védica, propagou o Vedānta Advaita por toda a Índia, desenvolvendo um Hinduísmo védico monista e eclético. Isto ele fez escrevendo extensos comentários sobre as Upaniṣads, o Brahma-sūtra e a Bhagavad-gītā, além de sistematizar o conhecimento das antigas tradições proto-hinduístas e agâmicas dos vaiṣṇavas, śaivas e śāktas, nos termos e sua filosofia vedānta advaita.
Sendo considerada como o Hinduísmo resultante da reforma do Brāhmanismo arcaico, a tradição Smārta (smārta sampradāya) assume uma postura liberal ou não sectária, pois aceita todas as principais deidades hindus, sem priorizar nenhuma delas, como sendo todas elas apenas formas manifestas e temporárias de uma realidade que as transcende, que é o Brahman único (eka), eterno (nitya), sem qualidades (nirguṇa) e não manifesto (avyakta). Isso contrasta com o ensinamento das outras três grandes tradições do Hinduísmos, onde há identidade entre a divindade prioritária e Brahman, que concilia em seu ser as diferenças intrínsecas sem perder a plenitude.
O Vaiṣṇavismo considera Viṣṇu, ou Kṛṣṇa, como a Divindade suprema eterna e capaz de conceder a libertação última (mokṣa) para a humanidade. Similarmente, muitos śaivas têm crenças similares sobre Śiva, e outros acreditam que a adoração da Śakti leva à obtenção de Śiva, que para os Śāktas é o Absoluto impessoal. No Śāktisno dá-se ênfase no feminino manifesto, pelo qual Śiva, o masculino não manifesto, pode ser realizado.
Unificando a adoração e popularizando o conceito das cinco deidades védicas – Ganeśa, Sūrya, Viṣṇu, Śiva e Śakti –, ao qual se acrescentou mais outra, Kumāra, os smārtas desenvolveram um tipo de adoração conhecido como Pañcāyatana-pūjā. Dentre essas deidades, os devotos podem escolher sua ‘deidade preferida’ (iṣṭha-devatā). Cada deus é nada mais que um reflexo de um único Absoluto impessoal (saguṇa brahman).
Os smārtas, assim como muitos śaivas e vaiṣṇavas, consideram Sūrya como um aspecto da Divindade. Nisso muitos śaivas e vaiṣṇavas diferem dos smartas, pois consideram que Sūrya é apenas um aspecto de Śiva e Viṣṇu, respectivamente. Por exemplo, para os vaiṣṇavas o nome da deidade do sol é Sūrya Nārāyaṇa, enquanto que na teologia śaiva afirma-se que o sol é uma das oito formas de Śiva, o aṣṭamūrti.[7] Da mesma forma, muitos śaivas consideram Gaṇeśa e Skanda como aspectos de Śakti e Śiva, respectivamente.
A tradição smārta de Śaṅkara é um desenvolvimento relativamente novo no Hinduísmo. Muito hindus, inclusive os neo-hindus, talvez não se identifiquem estritamente como os smārtas, mas, por aceitarem os princípios do Vedānta Advaita, como fundamento do universalismo não sectário, podem ser considerados como seus seguidores indiretos.
Entretanto, outras tradições contestam essa noção de que a supremacia de uma Divindade impessoal seja a única base para o não sectarismo. Essas controvérsias, sobre a natureza e identidade do Absoluto, sempre estiveram em pauta na história da filosofia e da religião na Índia.
TRADIÇÕES TÂNTRICAS DOS ĀGAMAS: VAIṢṆAVISMO , ŚAIVISMO E ŚĀKTISMO
A palavra āgama vêm da raiz verbal gam, ‘ir’, mais a preposição ‘ā’, ‘em direção a’, e se refere às escrituras como ‘aquilo que conduz’ (Grimes, 1996, p.14) e tem sido utilizada para indicar a tradição continuamente transmitida de mestre para discípulo. Os Āgamas, que são considerados tão importantes quanto os Nigamas, são classes de literaturas sagradas que estabelecem as crenças e práticas relacionadas com Viṣṇu, Śiva e Śakti [8]. Elas lidam com o conceito da Divindade, a disciplina da vida religiosa, os modos de adoração, a construção de templos e monastérios, a consagração de imagens, yoga, cosmologia e filosofia (Vivekjivandas, 2010, p. 102). Os termos saṁhitā e tantra geralmente são utilizados como sinônimos de āgama.
Os Āgamas prescrevem a adoração exclusiva de uma deidade em particular, Viṣṇu, Śiva e Śakti, e por isso recebem a denominação de Āgamas vaiṣṇavas, śaivas e śāktas, respectivamente. Podemos então constatar que, com exceção do Smārtismo – que se baseia fundamentalmente nos Nigamas –, as principais religiões do Hinduísmo tradicional baseiam fundamentalmente as suas doutrinas e rituais nos seus respectivos Āgamas, sem, contudo, rejeitar as raízes e autoridade dos Vedas. Esse é o caso das tradições do Vaiṣṇavismo, Śaivismo e Śāktismo.
A palavra vaiṣṇava indica um adorador de Viṣṇu ou de suas numerosas manifestações.[9] Viṣṇu é uma das principais deidades védicas e também é conhecido pelos nomes de Nārāyaṇa, Vāsudeva ou Puruṣottama. O Vaiṣṇavismo forma a maior de todas as denominações teístas do Hinduísmo. Por teísmo queremos indicar a ideia de um Deus supremo e distinto (ou uma deusa, no caso do Śāktismo) que é o criador, mantenedor e destruidor do Universo, e que tem o poder de salvar as pessoas do ciclo de nascimentos e mortes, concedendo a salvação por sua graça (Vivekjivandas, 2010, p. 162-163). Entretanto, não devemos confundir superficialmente o conceito de graça vaiṣṇava com o conceito cristão da graça eficaz ou gratuita[10].
O Vaiṣṇavismo tem Viṣṇu, em suas diferentes formas, como o objeto supremo de devoção e como Divindade suprema, dotada de opulências e atributos infinitos. Segundo Srinivasa Chari, o Vaiṣṇavismo é:
“[...] um sistema monoteísta que se baseia na teoria de que Viṣṇu é a Realidade última, a Deidade suprema (paratattva) e idêntico ao Brahman das Upaniṣads. Ele acredita que a adoração exclusiva e devotada de Viṣṇu levará à obtenção da meta espiritual mais elevada. E também enfatiza a observância de uma forma de vida ética e religiosa com o propósito da realização de Viṣṇu” (Chari, 2005, p. xxvi).
Um dos traços característicos e determinantes do Vaiṣṇavismo é o conceito de avatāra,[11] onde o ‘aparecimento’ ou ‘descida’ da Divindade está inserido no contexto da sua função como mantenedor do dharma, ou seja, da ordem ou princípios que mantém a criação; função que é exercida por Viṣṇu. Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa fala sobre as razões de sua descida: “De fato, sempre que há um declínio do dharma, ó Filho de Bharata, e surgimento do seu oposto, nesse momento eu me manifesto”[12]. Kṛṣṇa também descreve o propósito de tal manifestação: “Em me manifesto de tempos em tempos para a proteção dos virtuosos e destruição dos malfeitores e para o estabelecimento do dharma”[13].
Há referências a Viṣṇu e Nārāyaṇa nas literaturas védicas, inclusive no Ṛg Veda (Bhandarkar, 1965, p. 33). Uma das estrofes mais famosas do Ṛg Veda descreve que “os sábios sempre meditam na morada suprema de Viṣṇu, assim como os olhos se fixam no céu”.[14] Em alguns dos Brāhmaṇas, Āraṇyakas e Upaniṣads e proeminentemente em Purāṇas como o Viṣṇu, Bhāgavata, Matsya e Varaha Purāṇas, há descrições de Viṣṇu como o Ser supremo (Chatterjee, 1993, p. 5-6). Segundo relatos históricos, as escolas Pāñcarātra e Bhāgavata do Vaiṣṇavismo já eram bastante populares séculos antes da era cristã (Bashan, 1982, p. 331-332).
O Vaiṣṇavismo teria surgido da integração de várias tradições individuais de fé, como as dos Vāsudeva-Kṛṣṇa, Kṛṣṇa-Gopāla, Sātvatas e Bhāgavatas (Vivekjivandas, 2010, p. 163). O Vaiṣṇavismo foi popularizado pelos Ālvārs, os doze poetas santos do Sul da Índia, que viveram entre os séculos VI e IX d.C. Eles compunham e cantavam com intensa devoção as canções em tâmil glorificando Bhagavān Viṣṇu ou Nārāyaṇa e sua consorte, Lakṣmī, bem como Rāma e Kṛṣṇa. Eles conseguiram atrair pessoas de todas as classes sociais, pois pertenciam a diferentes camadas sociais (Vivekjivandas, 2010, p. 163).
Logo depois, as diferentes tradições (sampradāyas) do Vaiṣṇavismo tiveram suas bases filosóficas e teológicas sistematizadas pelos cinco grandes ācāryas (mestres) vaiṣṇavas de acordo como diferente hermenêuticas do Vedānta: (1) Rāmānuja (1017-1137 d.C.), e sua filosofia viśiṣṭādvaita, ‘não dualismo qualificado’; (2) Madhva (1238-1317 d.C.) e sua filosofia dvaita, ‘dualismo puro’; (3) Nimbārka (1125-1162 d.C.), e sua filosofia svābhāvika-dvaitādvaita, ‘dualismo e não dualismo inerente’; (4) Vallabha (1473-1531 d.C.), e sua filosofia śuddhādvaita, ‘não dualismo puro’; e (5) Caitanya Mahāprabhu (1486-1533 d.C.), e sua filosofia acintya-bhedābheda, ‘dualismo e não dualismo inconcebível’.
As diferentes escolas teológicas do Vaiṣṇavismo, mesmo tendo conceitos filosóficos e religiosos particulares, partilham de princípios fundamentais comuns, tais como: (1) Paramātmā (o ‘si mesmo’ supremo) ou Parameśvara (o Senhor supremo), que é conhecido como Viṣṇu, Nārāyaṇa, Vāsudeva, Nṛsiṁha, Rāma ou Kṛṣṇa, é a Pessoa Suprema (puruṣottama); (2) ele possui qualidades (saguṇa) e forma (sākāra); (3) ele, e unicamente ele, é a causa de todas as causas, inclusive da manifestação, manutenção e destruição do universo; e (4) ele se revela por meio de encarnações (avatāras), escrituras sagradas (śāstras), deidades (mūrtis) nos templos e mestres (gurus) autorrealizados.
Esses princípios são encontrados principalmente nos Pāñcarātras Samhitās, mais conhecidos como Āgamas ou Tantras vaiṣṇavas. Além disso, o Vaiṣṇavismo também se baseia nos Vedas, Purāṇas (principalmente o Bhāgavata e o Viṣṇu Purāṇas) e Mahābhārata (incluindo a Bhagavad-gītā). O caminho de devoção (bhakti), herdado das primeiras tradições devocionais e propagado em comum pelos cinco grandes ācāryas vaiṣṇavas, enfatiza prapatti, rendição integral que conduz diretamente a Viṣṇu, suas manifestações ou avatāras.
A segunda grande tradição do Hinduísmo de origem tântrica é o Śaivismo que segue os ensinamentos de Śiva (śivāśāsana), enquanto divindade suprema. Essa tradição tem como foco a adoração de Śiva[15] e sua consorte, considerada sua śakti, ou potência (Flood, 1996, p. 149). A adoração de Śiva é uma tradição pan-hindu, praticada por toda a Índia, Sri Lanka e Nepal (Flood, 1996, p. 17; 149). Também podem ser encontrados vestígios da adoração de Śiva em Java, Bali e outras regiões bem distantes da Índia. Gavin Flood afirma que “a formação das tradições Śaivas como as compreendemos começou a acontecer de 200 a.C. até 100 d. C.” (Flood, 2005, p. 205).
Apesar do Śaivismo ter se espalhado por todo o subcontinente da Índia, ele adquiriu formas e nomes próprios segundo as tradições regionais. No Śaivismo da Caxemira ele adquiriu características monistas singulares onde se aceita a identidade entre a Divindade (pati), isto é, Śiva, a alma individual (paśu) e o mundo (pāśa). Śiva é imanente e transcendente, e executa por meio de sua śakti as cinco ações de criação, preservação, destruição, revelação e ocultação. O Śaivismo da Caxemira, ou Śivādvaita, inclui tanto o conhecimento (jñāna) como a devoção (bhakti) como sādhanas (disciplina ou prática) para realizar a identidade da alma com Śiva (Encyclopedia of Hinduism, Vol. IX, p. 182).
Além do Śaivismo da Caxemira podemos ainda mencionar outras tradições śaivas tais como a tradição Nakulīśa ou Lakulīśa-pāśupatam no Gujarat; a tradição Kālamukha[16], também denominada Vira-śaivismo ou Liṅgāyata em Karnataka; a tradição Śaiva Siddhānta em Tamil Nadu. Esta última diferentemente da tradição da Caxemira desenvolveu um sistema dualista.
Além dos Āgamas, todas as seitas do Śaivismo, sejam elas do Norte ou do Sul da Índia, aceitam os Vedas como seus textos canônicos. Ambos são aceitos como afirmações de Śiva. Os Vedas considerados de natureza geral e os Āgamas de natureza específica (Encyclopedia of Hinduism, Vol. IX, p. 66).
A terceira grande tradição do Hinduísmo de origem agâmica é o Śāktismo. O Śāktismo considera Devī, ‘a Deusa’, como o Brahman Supremo, o ‘um sem um segundo’, e todas as outras formas da divindade, femininas ou masculinas, como sendo meramente suas diferentes manifestações. Nos detalhes de sua filosofia e prática, o Śāktismo lembra em muito o Śaivismo.
Contudo, os seguidores do Śāktismo, focam a maior parte de sua adoração na śakti, como o aspecto feminino dinâmico da Divindade Suprema. Śiva, o aspecto masculino da divindade, é apenas uma entidade transcendente, cuja adoração é relegada a um papel auxiliar (Subramuniyaswami, 1999, p. 1211).
O Śāktismo engloba uma infinidade de práticas, desde as encontradas de modo incipiente no animismo primitivo até às formas derivadas das especulações filosóficas que visam o acesso ao poder ou à energia da śakti divina. Suas principais escolas são Śrī-kula, ‘família de Śrī’, mais forte no Sul da Índia, e a Kālī-kula, ‘família de Kālī’, que prevalece no Norte e Leste da Índia.
A Deusa Devī concede tanto a libertação espiritual (mukti) como o desfrute material (bhukti). A meta última do Śāktismo é mokṣa, definido como identificação completa com a divindade de Śakti, que é adorada como Pārvatī, Durgā, Kālī, Amma, etc. Sua meta secundária é a execução de ações piedosas e desinteressadas, pois estas garantem, após a morte, entrar no paraíso celestial, bem como, quando do retorno à Terra, obter um bom nascimento.
O Śāktismo, da mesma forma que o Śaivismo, utiliza como disciplina espiritual (sādhana) os princípios do tantra. Esse tantra, baseando-se no princípio arcaico da conciliação dos opostos aparentes – masculino e feminino, prazer e dor, causa e efeito, corpo e mente etc. –, aceita o corpo com um templo da Divindade e utiliza várias técnicas de purificação e transformação. Nos seus rituais e visualizações, utiliza mantras[17], mudrās, ‘gestos manuais’[18] e yantras, ‘figuras geométricos’[19]. Mas diferentemente do Śaivismo, o Śāktismo dá mais ênfase na potência (śakti) da Divindade onde se manifesta seu Ser e Consciência. Isto é, o feminino manifesto do engloba o masculino não manifesto.
CONCLUSÃO
Muitos afirmam que o Hinduísmo não é uma religião, mas sim um “modo integral de vida”, cujos preceitos cobrem uma vasta extensão de atividades humanas, fora do alcance da maioria das religiões modernas. A complexidade das tradições do hinduísmo, de suas visões aparentemente conflitantes, portanto, nos impede de ter e fornecer uma visão panorâmica genuína do universo religioso e cultural que é o Hinduísmo. Com o acréscimo de nossos preconceitos acabamos gerando uma compreensão precária da sua realidade.
Contudo, podemos constatar a existência de uma realidade universal, atemporal e transcultural que tem conduzido o Hinduísmo em sua evolução histórica, sempre numa dimensão conciliatória de sintetize, onde, apesar de transformações conjunturais sempre ocorrer, a essência sempre se mantém.
Também o respeito pela pluralidade, não constitui apenas um princípio de tolerância, mas sim uma apreciação genuína pela forma com que a jornada humana pode ser feita em diferentes caminhos, e da melhor maneira, se for conduzida com consciência e exercício da liberdade.
NOTAS:
* Texto adaptado de: “A mística devocional (bhakti) como experiência estética (rasa): Um estudo do Bhakti-rasāmṛta-sindhu de Rūpa Gosvāmī” / Lucio Valera. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, 2015.
[1] Os Vedas, como literatura e tradição oral, são as mais antigas escrituras da Índia, senão da humanidade, que foram reveladas aos ṛṣis (sábios ou videntes). Eles são hinários que são subsidiados e complementados por um rico sistema ritualístico (constituído dos Brāhmaṇas e Araṇyakas) e metafísico (constituído das Upaniṣads), bem como por apêndices de ciências védicas (Vedāṅgas e Upavedas). Como escrituras védicas, estaremos indicando, primariamente, a matriz de escrituras védicas, acima descrita, que denominaremos Nigamas, e secundariamente todas as outras literaturas canônicas e os tratados filosófico teológicos, que se baseiam nas escrituras conhecidas como Āgamas (ou Tantras), ou na síntese do Nigama com o Āgama. Nessa segunda matriz, portanto inclui-se os Smṛtis (como os Gṛhya e Dharma Śāstras), os Purāṇas, o Mahābhārata (que inclui a Bhagavad-Gītā), o Ramāyāna e os Darśanas (escolas de pensamento).
[2] O termo ‘neo-Hinduísmo’, como foi utilizado por Paul Hacker, refere-se à interpretação do Hinduísmo, por hindus em resposta aos interesses do Ocidente não-hindu, e usando a terminologia e as suposições do Ocidente. Por exemplo, Hacker afirma que Willian James influenciou Radhakrishnan, e Vivekananda foi influenciado por Paul Deussen, um discípulo de Schopenhauer. Hacker contrasta o Neo-hinduísmo com o ‘Hinduísmo tradicional sobrevivente’, que se opõe a qualquer interpretação ocidental do Hinduísmo (Halbfass, 1995, p. 232).
[3] O universalismo hindu adota a ideologia eclética de que todas as religiões são verdadeiras e dignas de tolerância e respeito, e foi provavelmente influenciado pelo ‘Unitarismo’ protestante, que é uma das tendências religiosa mais tolerante e liberal do mundo moderno (Abbagnano, 1982, p. 943).
[4] Certamente podemos constatar que na Índia a maioria hindu da população se identifica como ‘hindus’. Mas isso se deve mais às razões culturais, éticas ou políticas. Pois com a emergência do nacionalismo hindu (Hindutva), as religiões hindus uniram-se ecumenicamente para salvaguardar suas identidades.
[5] Outro nome dos Vedas, ou Śrutis e Smṛtis védicos.
[6] Um brāhmaṇa smārta, ou seguidor da lei tradicional, é aquele que além de pertencer à casta dos brāhmaṇas, é um seguidor estrito das injunções dos Vedas e das escrituras (śāstras) que neles se baseiam (Encyclopedia of Hinduism 2010, Vol. IX, p. 551). Além disso, a estratificação social tradicional da Índia, além dos brāhmaṇa, também inclui mais três divisões: os ksatriyas (governantes), os vaisyas (comerciantes e agricultores) e os sudras (servos e operários). Estes últimos, entretanto, não recebem iniciação védica.
[7] Aṣṭamūrti (Encyclopedia of Hinduism, 2010, Vol. I, p. 483).
[8] Também podemos encontrar textos denominados āgamas no Budismo e Jainismo.
[9] Essa definição é encontrada no Padma Purāṇa (Patala Khaṇḍa, 30.14.2): vaiṣṇavo viṣṇu sevaka, “quem serve a Viṣṇu é um vaiṣṇava”. Uma análise etimológica da palavra Viṣṇu pode ser encontrada em GONDA, J. Aspects of Early Visnuism. Utrecht: Oosthoek, 1954, p. 54-55.
[10] Na doutrina cristã há o conceito de ‘graça eficaz’, que é o dom gratuito concedido por Deus cujos efeitos são infalíveis. Distingue-se da ‘graça suficiente’ que necessita da colaboração da liberdade humana, do livre arbítrio (Schlesinger, 1995, p. 1187). Essa discussão também pode ser encontra no Śrī-vaiṣṇavismo do filósofo Rāmanuja entre os conceitos de nirhetuka-kṛpa ‘graça incondicional’ e sahetuka-kṛpa ‘graça em resposta a uma boa ação feita pelo devoto’ (Chari, 1994, p. 278-279.
[11] A palavra avatāra, segundo Pāṇini (III.3.120), tem o sentido de ‘descida’, indicando a manifestação da Divindade ou de um ser divino na Terra (Stutley, 1977, p. 32).
[12] Yadā yadā hi dharmasya glānir bhavati bhārata, abhyutthānam adharmasya tad ātmānaṁ sṛjāmy aham (Bg, 4.7; Prabhupāda, 1994, p. 215).
[13] Paritrāṇāya sādhūnāṁ vināśāya ca duṣkṛtām, dharma-saṁsthāpanārthāya saṁbhavāmi yuge yuge (Bg, 4.8; Prabhupāda, 1994, p. 217).
[14] Tad viṣṇoḥ paramaṁ padaṁ sadā paśyanti sūrayaḥ, divīva cakṣur ātatam (RV, 1.22.20; Sarasvatī, 1987, Vol. II, p. 58).
[15] A palavra sânscrita śiva é um adjetivo que significa ‘bondoso’, ‘amistoso’, ‘auspicioso’, ‘gracioso’ e ‘auspicioso’ (Apte, 1965, p. 919).
[16] A seita dos Kālāmukhas, que prevaleceu na área de fala Kannada do Sul da Índia, adotava práticas muito austeras e muita polêmica foi gerada sobre ela.
[17] Mantras: “formula que compreende palavras e sons com poder mágico ou divino” (Stutley, 1977, p. 180).
[18] Mudrās são gestos físicos, mentais e psíquicos utilizados no yoga, na dança e no culto.
[19] Yantras: “diagramas místicos que se acredita possuir poder mágico ou oculto”. (Stutley, 1977, p. 347).
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Hare Krishna 🙏🏿🌹🙏🏻
Rasalila devi dasi